“Non” ou a vã glória de mandar: versão PRR

O que os novos governantes (e a nova oposição) têm de entender, é que estão milhares de milhões a arder, dependentes de decisão rápidas e assertivas. Primeiro semestre de 2026 aproxima-se rapidamente.

Em 1990 Manuel de Oliveira apresentava ao mundo uma das suas obras de arte cinematográficas, e num tom metafórico e algo melodramático contava a História de Portugal, a história do fado português, pela boca do alferes Cabrita. Quase 35 anos depois, parece que a epopeia portuguesa volta à cena, com os milhões do PRR como pano de fundo.

Não será porventura a primeira tarefa do novo Executivo recém eleito nas eleições de 10 de março, mas será seguramente uma das primeiras, e talvez aquela que mais impacto terá nas contas públicas nestes primeiros dias de governação: é urgente enviar a Bruxelas o pedido de desembolso relativo à 5ª tranche do PRR, uns meros 2.775 milhões de euros!

Portugal tinha previsto fazer este pedido até 31 de março (curiosamente este ano, dia em que se celebra a Páscoa), sendo dia 28 de março o último dia útil antes dessa data. Ora, segundo as melhores perspetivas o novo Executivo tomará posse no dia 27 e o anterior Governo deixou de presente de despedida essa nobre tarefa de estender pela 5ª vez a mão a Bruxelas, no âmbito do famoso programa de recuperação económico pós-Covid de que tanto precisa a nossa economia para reencontrar caminho.

Estou convencido que Bruxelas será complacente com a situação e que não será por uma questão de dias que, se tal for devidamente solicitado, um eventual atraso no pedido de desembolso possa ter consequências práticas na transferência de verbas, mas é sobretudo a substância e não a forma que preocupa.

Portugal tem mais de 700 milhões de euros relativos às tranches anteriores retidos por incumprimento de três reformas, das quais apenas duas entretanto se materializaram. E das metas e objetivos associados ao 5º pedido de reembolso, sabe-se já, pelas palavras da ex-ministra Mariana Vieira da Silva, que pelo menos três marcos dos 28 propostos não serão cumpridos, e estima-se que haja 12 outros marcos em riscos de incumprimento.

Ou seja, será de admitir que ainda que Bruxelas seja complacente com os timings do pedido, não o será tanto, como até já provou no exercício anterior, com o incumprimento de marcos e objetivos que foram formalmente acordados e contratualizados com o Governo anterior. O problema poderá ser ainda maior se este ritmo de atraso se estender ao próximo desembolso (previsto para o último trimestre de 2024).

Tal como no célebre filme de Manuel de Oliveira onde o alferes Cabrita discorria sobre as tristes derrotas militares portuguesas, justificadas por sucessivos erros de planeamento e organização estratégica, eis-nos quase 35 anos depois, a enfrentar desafios que nos transportam de novo para uma situação de recorrente vulnerabilidade, onde o mais otimista dos portugueses se sentirá tentado a invocar as célebres estrofes dos Lusíadas que motivaram o cineasta: “Ó vã glória de mandar! Ó vã cobiça…”

Não importa muito, mesmo nada, qual é a próxima solução governativa se, por distração, incúria ou simples inveja política, o país perder os euros pelos quais tanto teve que lutar na negociação pós-pandémica.

O que os novos governantes (e a nova oposição) têm de entender, é que estão milhares de milhões a arder, dependentes de tomadas de decisão rápidas e assertivas, e que o primeiro semestre de 2026 está a aproximar-se perigosa e rapidamente com cada tropeção que o país vai dando, com cada atraso que vamos reportando.

É verdade que há muitos programas e projetos que estão já em velocidade de cruzeiro e que está de alguma forma vencida a força da inércia inicial, mas Portugal não pode esperar, e muito mais do que qualquer alteração de impostos, ou reforma estrutural da saúde ou de educação, é a gestão orçamental dos próximos anos que está em causa.

O sucesso das agendas mobilizadoras para dinamizar novas cadeias produtivas na nossa economia, a desmaterialização de processos na Administração Pública para reduzir os custos de contexto e aumentar o investimento direto estrangeiro, e o financiamento das medidas de transição climática e transição digital contidas no PRR, são sangue oxigenado para o crescimento nos próximos anos, e parte da verdadeira essência que pode ajudar a melhorar o nível de vida dos portugueses.

É por isso fundamental que, quem quer que tome as rédeas valorize de uma vez por todas os apoios estruturais vindos de Bruxelas (garantidos e por garantir), que lhes dê a mesma importância que foi dada à política de contas certas dos últimos governos, e que não use o estatuto, uma vez mais, como a vã glória de mandar, que o alferes Cabrita tão jocosa e ironicamente descrevia nas suas memórias. É hora de escrever novas páginas da nossa história. Sem um único Non!

Nota: Os pontos de vista e opiniões aqui expressos são os meus e não representam nem refletem necessariamente os pontos de vista e opiniões da KPMG em Portugal.

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