Das ovelhas bordaleiras da Serra da Estrela tece-se o burel que dá cartas por esse mundo fora

A partir da lã das ovelhas bordaleiras da Serra da Estrela nasce o burel que dá vida a casacos, mantas ou calçado nas fábricas Ecolã e Burel Factory, em Manteigas, que vendem para Japão e Austrália.

Ainda nem é hora do “farnel” e Américo Albuquerque já “carrega às costas” uma longa jornada de trabalho: às 5h da manhã ordenhou as ovelhas bordaleiras — raça autóctone da Serra da Estrela — para vender depois o leite para uma queijaria. Encontrámo-lo horas depois, cajado na mão, a pastorear o rebanho nos campos verdes de Seia, a fazer contas às toneladas de lã tosquiada. Já sabe que lhe vai perder o rasto por esse mundo fora, quando for transformada no tecido burel nas fábricas de lanifícios que lhe darão vida em peças de vestuário, calçado ou utilizado como solução acústica.

Só na vila de Manteigas (Guarda) as grandes empregadoras desta arte ancestral são a Ecolã, que este ano comemora o centenário e já vai na quarta geração, e a Burel Factory, que em 2010 recuperou das cinzas a antiga Lanifícios Império, então em processo de insolvência. Distanciadas por poucos metros uma da outra em Amieiros Verdes, as empresas estão a dar cartas no mundo da moda ao inovarem e modernizarem o ofício que trabalha a lã bordaleira que, noutros tempos, era usada nas capas dos pastores da Serra da Estrela.

Américo Albuquerque, pastor desde muito novo, ainda se lembra do tempo em que este “tecido grosseiro aquecia os guardadores de rebanhos”. A fasquia foi sendo elevada, ao longo dos anos, com uma diversidade de produtos com design e a introdução da cor no burel, que até agora só existia nas tonalidades originais da lã. E ao ponto de as duas empresas conquistarem reconhecimento além-fronteiras, como os mercados japoneses e australianos que assumem grande peso na exportação dos produtos que criam.

Há conquistas que os empresários não esquecem. João Clara, da Ecolã, conta com orgulho que já vendeu burel para os guias da Louis Vuitton. Ainda se lembra de, em 2017, receber a visita de uma representante desta marca de luxo francesa. Já a Burel Factory, detalha a CEO Isabel Costa, “produziu o burel e bordou as paredes da sede da Microsoft, os tetos da Federação Portuguesa ou da Google“. Nos vários edifícios do BPI aplicou as diversas soluções de isolamento acústico em colunas, divisórias, paredes e tetos. Mas já lá vamos.

Américo Albuquerque no pastorício das ovelhas em Seia30 maio, 2025

Esta história começa com os guardadores de rebanho que dão o pontapé de arranque para todo este ciclo económico; são eles quem tosquia a lã bordaleira, matéria-prima que vendem a estas indústrias têxteis. Mas o negócio do pastorício já teve melhores dias e mais rentáveis, ainda que continue a ser o sustento de famílias inteiras na região da Beira Interior, muitas delas a trabalhar também nas fábricas que transformam a lã no tear e costuram depois o tecido.

“Dantes as ovelhas davam muito dinheiro. Vendíamos o estrume delas para fertilizar os campos”, começa a desfiar Américo Albuquerque, ao som do chocalhar dos guizos das 75 ovelhas bordaleiras orientadas pelos cães Serra da Estrela. E a venda do leite também já teve melhores dias. Contas feitas, a ordenhar as ovelhas de manhã e à noite, o pastor contabiliza 40 litros de leite vendidos ao final do dia para uma queijaria de fabrico de Queijo da Serra da Estrela.

Já a lã das ovelhas vende à Associação Nacional de Criadores de Ovinos da Serra da Estrela (ANCOSE) a 1,80 euros o quilograma. “Mas digo-lhe já que não compensa tosquiar, pois pago 2,5 euros por cabeça tosquiada. Nem dá para as bebidas da empreitada da tosquia”, atira. Mas não há outra solução. “Temos de as tosquiar senão elas até abafam com o calor no verão. Coitadas”, nota enquanto aponta para o rebanho a pastar nos prados ainda verdes. Mais uns meses, vão ficar secos e Américo sobe a pé à Serra da Estrela numa tradição pastorícia que leva à risca e arrasta mais pastores. “São duas horas a subir e depois fico lá a dormir numa carrinha durante semanas.”

Mas verdade seja dita, deixa cair em jeito de desabafo, “não compensa muito ser pastor porque são muitas horas de trabalho diárias ao frio, calor e chuva”, frisando que o pouco que o Estado subsidia também não é suficiente para as despesas, que são muitas. “Temos de pagar a renda das terras que não são nossas, de semear pasto para manter as ovelhas. É uma trabalheira.

João Clara e a filha Joana Clara, da Ecolã30 maio, 2025

Seguimos depois viagem pelas íngremes encostas, por curvas e entre curvas até Manteigas, com paisagens verdes de cortar a respiração, para acompanhar in locu o processo de transformação da lã bordaleira em burel nos antigos teares. E ver de perto este tecido dar vida a casacos, chapéus, carteiras, calçado, painéis e cortinas acústicas, e muito mais produtos, alguns dos quais já conquistaram o estatuto de luxo e figuram no circuito da alta costura.

Comecemos este périplo pela Ecolã, que já vai na quarta geração, com Joana Clara. O pai, João Clara, ainda por lá anda e é ele quem nos guia na visita pela fábrica enquanto narra toda uma herança cultural em torno deste ofício ancestral que transforma, no tear, a lã neste tecido resistente a marcar pontos por esse mundo fora, principalmente no Japão, Austrália e nalguns países europeus. Exporta mais de 50% da produção. “Há uma marca de sapatos alemã que nos compra cerca de 3.000 metros de burel por ano para produzir sapatos”, relata João Clara, lembrando que também tem marca própria de calçado, que manda fazer numa fábrica em Felgueiras.

Há uma marca de sapatos alemã que nos compra cerca de 3.000 metros de burel por ano para produzir sapatos.

João Clara

Proprietário da Ecolã

Mas a Ecolã nem sempre foi assim “inovadora” e a costurar com design. “A empresa começou com o meu avô em 1925 a produzir burel para os pequenos pastores nos baixos da casa. Ainda tenho o tear dele aqui na fábrica”, conta o empresário que há 30 anos regressou de Lisboa a Manteigas para assumir funções na fábrica após a morte do pai.

Com ele trouxe uma nova dinâmica ao burel, como nos conta a filha Joana Clara: “O meu avô apenas fazia trajes para pastor e só se vendia em castanho, não havia tingimento. Só em 1995, quando o meu pai assume a empresa, é que se começou a utilizar o burel em peças de vestuário de senhora e de homem, como casacos, e a acompanhar as tendências da moda”, desfia Joana Clara, orgulhosa pelas conquistas da fábrica até agora.

João Clara da Ecolã, em Manteigas, a demonstrar algumas das etapas antigas da transformação da lã bordaleira em burel30 maio, 2025

O pai acrescenta que “além das roupas típicas e trajes dos pastores para os quais o burel foi destinado, agora tem uma diversificação enorme, nomeadamente em roupa com design, acessórios como malas, além da decoração de interiores, e soluções de isolamento térmico e acústico em vários hotéis, como o Hotel da Fábrica”, propriedade da família. Foi neste edifício que a Ecolã nasceu e agora conta a história da tecelagem da lã e do burel, decorado com produtos feitos com este tecido.

Já nas atuais instalações da Ecolã, o empresário vai-nos mostrando as “três gerações de máquinas” ancestrais que ainda funcionam. “Estes foram os primeiros teares, que trabalhavam à luz da candeia — pois não havia eletricidade naquela altura –, que faziam o burel e os cobertores que todas as famílias tinham em Portugal como enxoval”, recorda João Clara, que tem 25 colaboradores a trabalhar na empresa.

Ainda se lembra de, em miúdo, “ganhar dinheiro a ajudar o pai a encher canelas na fábrica e de ter umas calças feitas em burel que duraram anos”. As duas filhas seguiram-lhe os passos; trabalham agora com ele e nas férias escolares também iam colocar etiquetas nas peças.

Isabel Costa e o marido João Tomás, proprietários da Burel Factory30 maio, 2025

A escassos metros dali, entrámos por um portão verde até chegarmos ao edifício principal da Burel Factory cujos donos, Isabel Costa e o marido João Tomás, também são proprietários dos hotéis Casa das Penhas Douradas e Casa de São Lourenço, ambos localizados em Manteigas.

Começámos a nossa viagem pelo burel num pavilhão onde avistamos logo fardos de lã que foi lavada noutra fábrica, na Guarda. Já na indústria de Manteigas, esta matéria-prima é carmeada, cardada e transformada em mecha que é depois torcida na fiação. Daqui sai o fio que vai ao tear para tecer e dar origem ao burel.

Por aqui há ainda mais umas quantas zonas industriais, uma de controlo de qualidade com as “metedeiras de fios que verificam a qualidade” e outra para a confeção dos produtos, detalha Dina Almeida, responsável na fábrica, enquanto nos guia pelos vários espaços. A proprietária Isabel Costa enuncia depois “os quatro setores da empresa: arquitetura, têxtil/lar, moda e tecidos que são produzidos e vendidos para outras marcas“. A Burel Factory tem nos “países nórdicos, Estados Unidos, Canadá, Japão e Coreia” os principais mercados de exportação, aponta a empresária.

É possível salvar património, indústrias e artes antigas, e criar produtos de valor, valorizando a lã local.

Isabel Costa

CEO da Burel Factory

Quando os donos desta empresa resgataram da insolvência a antiga Lanifícios Império, em 2011, preocuparam-se “em salvar todo o equipamento com máquinas centenárias e manter esse património”, além de todos os funcionários que iriam ficar no desemprego. Isabel Costa e o marido João Tomás depararam-se na altura com um grave problema de desemprego na Serra da Estrela. Agora empregam 65 colaboradores na fábrica de Manteigas.

O casal conseguiu mostrar que “é possível salvar património, indústrias e artes antigas, e criar produtos de valor, valorizando a lã local”, contribuindo para alavancar a economia da região, segundo conta Isabel Costa. “Estamos a preservar um produto endógeno local”, além de contribuir para a “captação e fixação de novas gerações na vila”, sustenta.

Burel Factory, Manteigas30 maio, 2025

Por estes dias, estas duas fábricas de lanifícios receberam ainda mais visitas no âmbito do programa da terceira edição do Lãnd – Wool Innovation Week, organizado pelo município de Manteigas e pela Associação de Desenvolvimento Integrado da Rede de Aldeias de Montanha (ADIRAM), que este domingo termina. E que atesta, segundo a organização, “o esforço de todo um setor empresarial e da comunidade local na valorização deste que é um património único, identitário e com forte potencial criativo em várias áreas como a moda, a arquitetura ou o design de interiores e de equipamento”.

Esta jornada criativa em torno da lã e da economia por esta gerada também é forma de atrair mais turismo para as aldeias da Serra da Estrela, nota Célia Gonçalves, secretária executiva da ADIRAM, não limitando a atratividade apenas à subida à torre para ver a neve, como já foi em tempos. Mas, sim, mostrar que “há um conjunto de aldeias com valores turísticos que podem ser colocados nos ciclos económicos”, sublinha, e com uma mão cheia de iniciativas que também incluíram visitas aos pastos para ver de perto a realidade das ovelhas bordaleiras, o início de todo o ciclo da lã.

Burel Factory, Manteigas

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