"O montante de subvenções já é tão elevado que me parece que não há, pelo menos para já, necessidade de recorrer a mais empréstimos" no PRR, diz o especialista em fundos europeus Alfredo Marques.
Portugal tem em média 6,8 mil milhões para executar por ano entre 2021 e 2029. Mas para Alfredo Marques, antigo administrador principal da Comissão Europeia na Direção-Geral da Concorrência, é necessário distinguir entre “executar para não ter de fazer devoluções à União Europeia” e “executar tudo e em bons projetos”. “Não há muito mérito em executar tudo, mas em más políticas, ou maus projetos”, defende.
Para o consultor de entidades públicas e de empresas sobre políticas europeias, Portugal tem um “enorme desafio pela frente”, e “não seria perdoável perder esta oportunidade”. Mas, “para executar tudo e bem, é necessário fazer um esforço maior do que o que tem sido feito”, alerta.
“O país tem aqui uma oportunidade única e irrepetível (esperemos que sim, por boas razões) para fazer coisas em grande” até porque “o montante de fundos que o país vai receber ao longo desta década é gigantesco e inédito”, sublinha o professor da Universidade de Coimbra.
Alfredo Marques não entende os receios do Presidente da República de uma excessiva disparidade no controlo dos fundos europeus, sublinhada em entrevista à RTP a 13 de maio, e lembra que este “é um domínio em que Portugal evoluiu bem e se tornou bom” e questionado se o Governo saiu politicamente beliscado por não ter revelado logo de início todas as metas e reformas negociadas com Bruxelas, o coordenador geral do Centro de Estudos da União Europeia, da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, prefere sublinhar que “nunca tinha havido um documento enviado a Bruxelas e tornado público para suportar o pedido de fundos tão explícito como o PRR”.
Esta entrevista faz parte de um trabalho do ECO no qual foram colocadas as mesmas questões a António Figueiredo, consultor da Comissão de Coordenação da Região do Norte e da Comissão Europeia e presidente da consultora Quaternaire.
O PRR está bem alinhado com as necessidades da economia nacional, ou antes excessivamente em linha com aquelas que são as prioridades europeias?
O PRR tem um enquadramento geral nacional – a Estratégia Portugal 2030 -, que se assume como o referencial principal de planeamento das políticas públicas de promoção do desenvolvimento económico e social do país. Esta Estratégia vai, assim, servir de ‘chapéu’ não só para o PRR, mas também para o Acordo de Parceria Portugal 2030 e para o Plano Estratégico da PAC, a implementar (ambos) no ciclo de programação 2021 -2027. Não vejo no PRR falta de enquadramento formal nesta Estratégia nacional, até porque esta Estratégia contempla uma grande vastidão de temas e objetivos. Entre estes, parece-me que se encontram as grandes prioridades nacionais atuais. Por outro lado, também me parece que existe alinhamento do PRR com os 6 pilares da política da UE em que inserem estes planos (genericamente designada por ‘Próxima Geração UE’), a qual, por sua vez, também é muito abrangente, pois vai da transição verde e da transição digital, à política para a próxima geração, crianças e jovens, incluindo a educação e as competências, passando por temas como a saúde, assim como outros, bastante genéricos, como o crescimento inteligente, sustentável e inclusivo, a coesão económica, social e territorial, a I&D e inovação, a criação de emprego, a produtividade e a competitividade, e o mercado único com PME fortes (aliás, o facto de o PRR português já ter sido aprovado pela Comissão é a prova de que este alinhamento existe). Este vasto leque de possibilidades permite, assim, a cada país (é o seu lado positivo) levar a cabo a política que corresponde efetivamente às suas necessidades. Por isso, se verificam grandes diferenças nos planos apresentados à Comissão Europeia pelos Estados membros.
O PRR define três áreas de intervenção (Resiliência, Transição Climática e Transição Digital), as quais, com um total de 20 domínios e múltiplas subdivisões destes domínios (dando uma pletora de objetivos, designados no PRR por ‘reformas’) preenche a matriz dos seis pilares referidos. O problema que poderá, assim, existir é o da insuficiente focalização, em termos de objetivos, embora o horizonte temporal seja de cinco anos e todos os objetivos definidos, em si mesmos, sejam justificáveis. Só se poderá, no entanto, saber verdadeiramente a posteriori em que foram exatamente aplicados os fundos em cada um destes objetivos, mesmo havendo, à partida, muitos projetos que já estão definidos. A experiência do passado aconselha prudência na antecipação das realizações.
Deveria ser dedicada uma fatia maior às empresas?
A fatia para as empresas, no PRR, não é muito grande: considerando a Capitalização e Inovação Empresarial, na área Resiliência, e as Empresas 4.0, na área Transição Digital, eleva-se a 3,6 mil milhões de euros, representando 21% do orçamento total do programa (incluindo subvenções e empréstimos). Não é, evidentemente, com este montante que se pode, ao mesmo tempo, recapitalizar as empresas e aumentar significativamente o potencial produtivo do país através de novos investimentos. O PRR é, no entanto, um programa atípico: decorre de um contexto particular, o da pandemia, e deve ser situado nesse contexto. Os apoios às empresas devem ser considerados tendo em conta, simultaneamente, este montante, assim como o que resta do Portugal 2020 (11,2 mil milhões de euros para 3 anos: 2021-2023, dos quais uma elevada percentagem se destina às empresas), e as dotações do Acordo de Parceria 2021-2029 (33,6 mil milhões de euros, que, pela sua magnitude, só teve equivalente no QCA III, e dos quais uma larga fatia não poderá deixar de ser destinada à atividade produtiva através de incentivos diretos às empresas). Julgo que, pela sua própria natureza, é nos «pacotes» de fundos como os que temos recebido desde o QCA I (1989-93) que se deve dar uma maior prioridade às empresas e a tudo o mais que pode contribuir para a transformação estrutural da economia (capital humano, criação de conhecimento aplicável à atividade produtiva, etc.).
A este propósito, parece-me de realçar a premência de estimular investimentos produtivos de grande dimensão em bens e serviços transacionáveis (exportáveis). Um dos Calcanhares de Aquiles da economia portuguesa é o da falta de dimensão das empresas exportadoras, que é bem visível quando observamos as estatísticas das exportações: considerando as exportações para fora da União (onde está a maior parte do mercado mundial), verifica-se que Portugal é um dos Estados-membros em que a percentagem de PME no número total de empresas exportadoras é maior. E não é por ter mais PME, em termos relativos, do que os outros países; é pelo défice de grandes empresas exportadoras.
As estatísticas são ainda mais esclarecedoras quando olhamos para o valor exportado médio por empresa para o resto do mundo: Portugal está aqui ainda mais mal colocado no contexto europeu do que no indicador anterior. Mais significativo ainda é a mais fraca posição das grandes empresas neste indicador (isto é, o valor exportado médio) do que a das PME. E o problema não é o da exiguidade do mercado doméstico português, porque a Bélgica está num dos melhores lugares nos indicadores que referi. Portanto, embora as PME tenham uma grande importância para a economia (flexibilidade) e para a sociedade (criação de emprego), sem grandes empresas de bens e serviços transacionáveis não haverá maior crescimento da economia do que tem havido, nem crescimento com sustentabilidade a longo prazo.
Ora, os fundos estruturais têm uma grande capacidade de atrair investimento direto estrangeiro de grande dimensão (como já fizeram no passado), assim como de conceder incentivos ao grande investimento nacional, se este, predominantemente (há exceções, mas poucas), deixar de preferir os setores não transacionáveis (protegidos naturalmente da concorrência externa), como tem acontecido, e se voltar para as exportações (com projetos de grande qualidade, necessariamente).
Portugal vai conseguir executar tantos fundos em simultâneo?
O montante de fundos que o país vai receber ao longo desta década é gigantesco e inédito, colocando, necessariamente, um problema de absorção (quer dizer, de utilização efetivamente útil e eficiente). Tendo em conta os diferentes programas para esta década e o período de vida de cada um deles, estarão disponíveis, a título de subvenções, 10,1 mil milhões de euros/ano entre 2021 e 2023; 6,4 mil milhões/ano entre 2024 e 2026; e 3,7 mil milhões/ano entre 2027 e 2029. Considerando o conjunto do período de 2021-2029, são 6,8 mil milhões/ano em média.
O país tem aqui uma oportunidade única e irrepetível (esperemos que sim, por boas razões) para fazer coisas em grande (sem deixar de fazer também as mais pequenas, evidentemente), que sejam verdadeiramente transformadoras da economia e da sociedade.
Quanto a saber se o país vai conseguir executar tudo, temos de distinguir entre executar para não ter de fazer devoluções à União, e executar tudo e em bons projetos. Não há muito mérito em executar tudo, mas em más políticas, ou maus projetos. Julgo que tudo está em aberto. Há um enorme desafio pela frente, e não seria perdoável perder esta oportunidade. Para executar tudo e bem, é necessário fazer um esforço maior do que o que tem sido feito, porque o volume de recursos disponível é maior, e é preciso ter em conta que aos números que referi acresce ainda a contrapartida nacional, pois os fundos europeus não financiam os projetos a 100%. Uma parte dessa contrapartida virá do orçamento do Estado, se os projetos forem da Administração Pública (central ou municipal); será seguramente a parte mais pequena. A parte maior virá dos investidores privados. Como, para estes, a taxa de financiamento dos fundos é menor do que a dos projetos da Administração Pública, isso significa que vai ser necessário muito capital privado. Por isso, insisto na necessidade de haver grandes e bons projetos de investimento, e que, pela razão referida anteriormente, deverão ser preferencialmente em bens e serviços transacionáveis.
Portugal deveria recorrer a uma fatia maior de empréstimos, ou tendo em conta o desequilíbrio das contas públicas esta é a opção mais sensata?
O montante de subvenções já é tão elevado que me parece que não há, pelo menos para já, necessidade de recorrer a mais empréstimos, que, ainda para mais, fariam aumentar o ónus, já pesadíssimo, da dívida pública. Foi, contudo, aberto a nível europeu um caminho que muitos julgavam impossível para fazer aumentar o montante de recursos com que a União pode apoiar os Estados-membros: a emissão de obrigações, que já começou. Assim, se for necessário recorrer a (mais) empréstimos, é bom que exista essa possibilidade.
A estrutura de controlo dos fundos criada pelo Executivo é suficiente ou partilha dos receios do Presidente da República de uma excessiva disparidade no controlo?
Não sei exatamente a que se referia o Presidente quando fez essa observação. Se se trata de controlo da legalidade na aplicação dos fundos (não falo de legalidade em geral no país), acho que é um domínio em que Portugal evoluiu bem e se tornou bom. Se o Presidente se referia a boa aplicação dos fundos, já disse o que penso sobre o assunto.
Politicamente o Governo saiu beliscado por não ter logo de início revelado todas as milestones e reformas negociadas com Bruxelas?
Nunca tinha havido um documento enviado a Bruxelas e tornado público para suportar o pedido de fundos tão explícito como o PRR. Ao contrário do que aconteceu nos três QCA, no QREN e no Portugal 2020 (e em perfeita consonância com as regras emanadas de Bruxelas), os planos e programas submetidos à Comissão Europeia continham, tipicamente, apenas eixos e medidas (não projetos concretos, incluindo a identidade dos promotores/beneficiários). A indicação prévia de projetos era uma exceção, e tinha a sua justificação particular.
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