2022 trará desfecho do braço-de-ferro entre UE e Polónia e Hungria no Estado de Direito e fundos europeus

O próximo ano pode trazer o desfecho da disputa entre a União Europeia, a Polónia e a Hungria. O Tribunal da UE entra em jogo no início de 2021, depois cabe à Comissão Europeia fazer o xeque-mate.

O braço-de-ferro entre a União Europeia e países como a Hungria e a Polónia sobre o cumprimento do Estado de Direito já tem anos, mas 2022 poderá ser um ano decisivo e trazer um desfecho numa das áreas de disputa que envolve dinheiro. Em causa estão os fundos europeus, incluindo a “bazuca” europeia, a qual ainda não chegou a esses dois países. Depois de no início de 2022 o Tribunal de Justiça da União Europeia decidir sobre a legalidade do mecanismo de condicionalidade do Estado de Direito ao acesso aos fundos, caberá à Comissão Europeia passar das palavras aos atos. Do lado do Parlamento Europeu a pressão é elevada e vai manter-se.

Não há certezas, mas os eurodeputados e especialistas em assuntos europeus ouvidos pelo ECO apontam para um desfecho em 2022, ainda que o enredo não fique totalmente fechado. O mainstream europeu está unido na pressão à Polónia e Hungria para reverterem medidas que estão a subverter o Estado de Direito, nomeadamente a independência do sistema judicial e a luta contra a corrupção, o que afeta os fundos europeus, e deverá ter uma quase vitória no próximo ano, mas sem eliminar o surgimento de novos problemas mais à frente.

Estou convencido que os Planos de Recuperação e Resiliência (PRR) da Polónia e da Hungria têm de ser aprovados em 2022“, diz José Manuel Fernandes, eurodeputado do PSD, uma vez que os prazos para a execução dos planos são curtos, antevendo que esses países vão dar garantias à Comissão para que esta os aprove, até porque dependem em grande parte dos fundos europeus. Outra questão é saber se vão ou não cumprir o que dizem: “Se houver uma prática reiterada contra o Estado de Direito, aí, novamente, este mecanismo de condicionalidade entrará em ação“, o que se traduz na suspensão das transferências, recorda o eurodeputado.

Margarida Marques, eurodeputada do PS, espera que estes dois países acabem por ceder perante as exigências das instituições europeias: “Após esgotarem todas as tentativas para atrasar o processo, assim que haja uma decisão final, espero que percebam que não têm margem de manobra e que têm mesmo de respeitar o princípio de Estado de Direito“. Mas admite que é “realista” pensar que a situação atual não se vai alterar e garante que “o dinheiro vai ficar congelado até que haja um compromisso de que é respeitado o Estado de Direito”. Essa avaliação pode mudar consoante o resultado das eleições húngaras previstas para o próximo ano ou uma diferente base de apoio no Governo polaco.

Até José Gusmão, eurodeputado do Bloco de Esquerda, “aposta” na aprovação dos PRR destes dois países: “A minha convicção é que toda esta batalha judicial tem mais como objetivo negociar o PRR destes países do que propriamente propor a sua rejeição“, diz, referindo que “não é inteiramente claro” para si “quais são as intenções da Comissão Europeia no braço-de-ferro com a Hungria e a Polónia”. “É o respeito pelos direitos humanos ou guerras de competências entre Bruxelas e esses governos nacionais?”, questiona Gusmão.

Para Miguel Poiares Maduro, ex-ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional do Governo PSD/CDS, o desfecho dependerá da “capacidade de resistência que a Polónia e Hungria tiverem a sobreviverem sem fundos europeus”. Paulo Sande, especialista em questões europeias, partilha da incerteza e tem “sérias dúvidas de que o processo seja rápido”. “Estou convencido que se vai arrastar por 2022 a dentro”, prevê, notando também que dependerá das eleições em França, que se realizam durante a presidência francesa do Conselho da União Europeia.

O que é o mecanismo e para que serve?

Recuemos a 2020. Com a pandemia a estalar em todo o mundo, os países da União Europeia conseguiram chegar a acordo sobre a “bazuca europeia” (o nome oficial é Próxima Geração UE) para uma resposta conjunta de estímulo orçamental à crise. Porém, na guerra entre os diferentes interesses dos Estados-membros surgiu o mecanismo de condicionalidade que prevê a suspensão ou mesmo corte de fundos europeus quando os países se desviam do Estado de Direito, comprometendo a transparência e fiscalização do dinheiro europeu.

O objetivo foi criar um instrumento mais eficaz do que aquele que está atualmente previsto nos tratados que é o Artigo 7º“, descodifica Miguel Poiares Maduro, lembrando as dificuldades da execução das sanções desse artigo, nomeadamente a exigência de unanimidade dos restantes países (com a Hungria e a Polónia a salvarem-se mutuamente). Assim, o mecanismo de condicionalidade “visa suprir as deficiências nos atuais sistemas de controlo e garantir a proteção dos direitos fundamentais e do Estado de Direito dentro de um Estado-membro da UE”, concretiza, explicando que se aplica estritamente a violações que “sejam suscetíveis de dificultar o controlo de corrupção e prevenção da corrupção no uso dos fundos europeus”. Ou seja, é delimitado a uma potencial “má aplicação dos fundos”.

O mecanismo de condicionalidade visa suprir as deficiências nos atuais sistema de controlo e garantia da proteção dos direitos fundamentais e do Estado de Direito dentro de um Estado-membro da UE.

Miguel Poiares Maduro

Ex-ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional

Para Paulo Sande esta foi a fórmula encontrada para impedir que os fundos europeus sejam utilizados para fins contrários para os quais foram criados. “Os fundos europeus existem só por uma razão: para criar um level playing field [igualdade de condições] e um nível mínimo de desenvolvimento, de repartição de recursos e de aproximação entre os níveis de vida dos países da União Europeia”, explica, notando que o “objetivo é evitar situações de rotura”. “Sempre que numa sociedade qualquer as diferenças sejam muito grandes e tendam a aprofundar-se necessariamente vai haver situações de rotura“, argumenta.

Do lado do Parlamento Europeu (e de vários governos europeus), a retórica passa pela proteção do contribuinte europeu. “O dinheiro dos cidadãos europeus tem de ser usado para promover os valores europeus e não contra esses valores”, defende Margarida Marques, esclarecendo que o objetivo é proteger o orçamento europeu de violações do Estado de Direito dentro dos países, “designadamente na independência dos tribunais e de todas as instituições que têm capacidade de averiguar o uso dos dinheiros da UE”. Em concreto, na Polónia e na Hungria “o sistema judicial não é independente do sistema político” pelo que “não há confiança em que haja esse acompanhamento e que se assegure que não há corrupção, conflito de interesses ou desvio de financiamento”.

O dinheiro dos cidadãos europeus tem de ser usado para promover os valores europeus e não contra esses valores.

Margarida Marques

Eurodeputada do PS

José Manuel Fernandes, do PSD, complementa com a ideia de que se está a “usar o orçamento europeu para proteger os cidadãos da UE”, explicando que, no limite, os pagamentos podem ser congelados se as irregularidades não forem resolvidas. “No limite, haverá o corte” desses fundos, assegura, assumindo que este regulamento é uma forma de se “obrigar os Estados-membros a respeitarem o orçamento comunitário, os valores europeus e o Estado de Direito”.

A ideia de meter um preço ao respeito de valores fundamentais na UE é uma questão altamente problemática.

José Gusmão

Eurodeputado do Bloco de Esquerda

Esta foi a forma pragmática que se encontrou para pressionar estes países, mas nem todos os que atacam a Polónia e a Hungria gostaram da solução. É o caso da esquerda europeia, como explica José Gusmão: “A ideia de meter um preço ao respeito de valores fundamentais na UE é uma questão altamente problemática”, diz, referindo que os Tratados impõem o cumprimento de requisitos para a entrada na UE, mas têm um mecanismo “coxo” (o Artigo 7.º) para fazer cumprir esses requisitos nos países que já estão na União. As “reservas” da esquerda, que acabou por não se opor, passam pela “eficácia” do mecanismo de condicionalidade, nomeadamente a hipótese de meter a população desses países contra Bruxelas, e por uma “questão de princípio difícil de legitimar”. “Os Estados que precisam de dinheiro [como a Polónia e a Hungria] tem de respeitar o Estado de Direito, os que não precisam já não têm de respeitar”, diz, referindo-se a quando estes problemas se colocarem noutros países da UE.

Decisão do Tribunal esperada no início de 2022

Divergências políticas à parte, a questão agora está nos tribunais. Isto porque para se chegar a acordo, no final da presidência alemã do Conselho da União Europeia, as conclusões do Conselho Europeu (órgão que reúne os 27 Chefes de Estado) sinalizaram que a compatibilidade do regulamento do mecanismo de condicionalidade com os Tratados europeus seria avaliada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia antes de ser aplicado, ainda que tenha entrado em vigor logo em janeiro de 2021, a pedido da Polónia e da Hungria.

A decisão do tribunal situado no Luxemburgo deverá chegar no início de 2022, mas no início de dezembro já chegaram indícios do que poderá vir a ser a decisão final. O advogado-geral Campos Sánchez-Bordona deu razão às instituições europeias e aos Estados-membros que aprovaram o regulamento, defendendo que o mecanismo de condicionalidade é compatível com o Artigo 7.º e rejeitando os argumentos da Hungria e da Polónia de que este era incompatível com os Tratados. Perante esta decisão, antevendo já o que será o veredicto final, o Governo polaco decidiu enviar o regulamento para o Tribunal Constitucional polaco, desafiando novamente a supremacia da lei europeia sobre a lei nacional.

Os eurodeputados regozijaram-se com a opinião do advogado-geral e não têm dúvidas: “Estou absolutamente certo que o Tribunal de Justiça dirá que o regulamento respeita os Tratados e, portanto, aplica-se”, diz José Manuel Fernandes, referindo que os dois países, que recebem “avultados montantes do orçamento europeu”, “tentaram ganhar algum tempo” com esta ação judicial. Uma opinião em linha com a de Margarida Marques, que diz que a opinião do advogado-geral é bastante clara.

Estou absolutamente certo que o Tribunal de Justiça dirá que o regulamento respeita os Tratados e, portanto, aplica-se.

José Manuel Fernandes

Eurodeputado do PSD

“Um dos argumentos invocados [pela Hungria e Polónia] é que esta é uma forma de contornar os processos de decisão que o Artigo 7.º prevê para suspender direitos de um Estado-membro em caso de violação do Estado de Direito”, explica Poiares Maduro, antecipando que “o Tribunal vai seguir a opinião do advogado geral que já é pública e que é favorável à legalidade do regulamento”. Em concreto está em cima da mesa o facto de o mecanismo do Artigo 7.º prever uma decisão por unanimidade e este mecanismo ser por maioria qualificada.

Parlamento pressiona Comissão

Para colocar pressão na Comissão Europeia para esta acionar o mecanismo, o Parlamento Europeu decidiu em outubro colocar uma ação judicial para obrigar o executivo comunitário a aplicar o mecanismo de condicionalidade. Mais do que uma questão jurídica, esta é uma forma de pressão política, dizem os eurodeputados: “É para acelerar o processo”, nota Margarida Marques, afirmando não ter dúvidas de que a Comissão Europeia apoia o regulamento. “A divergência fundamental tem a ver com os timings“, diz, reforçando a ideia de que a legislação se aplica desde o início deste ano.

Toda essa discussão é irrelevante porque a Comissão e o Conselho têm um mecanismo mais eficaz de condicionar a entrega de fundos europeus à Polónia e Hungria que é não aprovar os respetivos PRR ou até mesmo os Acordos de Parceria para os próximos fundos europeus.

Miguel Poiares Maduro

Ex-ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional

José Manuel Fernandes corrobora: “O objetivo é de que não haja nenhum atraso na execução daquilo que já está em vigor”, acrescenta, pedindo à Comissão que não tente “nenhuma manobra dilatória neste processo”. E desvaloriza as conclusões do Conselho Europeu, argumentando que “não são vinculativas e foram, sobretudo, a forma de politicamente se ultrapassar uma chantagem que a Polónia e a Hungria estavam a fazer”. Esta é uma leitura partilhada também por Paulo Sande que diz que “as conclusões do Conselho Europeu não são atos legislativos”.

Contudo, para Miguel Poiares Maduro esta é uma “falsa questão”. “Toda essa discussão é irrelevante porque a Comissão e o Conselho têm hoje um mecanismo mais eficaz de condicionar a entrega de fundos europeus à Polónia e Hungria que é não aprovar os respetivos PRR ou até mesmo os Acordos de Parceria para os próximos fundos europeus”, recorda o ex-ministro, referindo que até serem aprovados não recebem fundos. “Por exemplo, a Comissão condicionou à Polónia a aprovação desses planos à inclusão de uma série de reformas que garantam a independência da sua magistratura“, revela, argumentando que este é um “instrumento mais poderoso” que Bruxelas pode usar no braço-de-ferro com a Varsóvia e Budapeste. Mas coloca-se a questão disso não poder arrastar-se eternamente, caso nenhuma das partes ceda.

Porém, José Manuel Fernandes relembra que este mecanismo também se aplica ao anterior Quadro Financeiro Plurianual, cuja execução pode ir até 2023. “Ainda há aqui montantes de 2014-2020 que podem estar em causa se se verificar que quer a Polónia, quer a Hungria ou outro Estado violem o Estado de Direito”, alerta.

Comissão envia cartas à Polónia e à Hungria. E há uma solução de recurso

Há meses que a Comissão Europeia negoceia com a Polónia e a Hungria os respetivos PRR, numa altura em que outros países, como é o caso de Portugal, já receberam tranches e estão já a executar os projetos. Em novembro, o executivo comunitário, que é a instituição responsável por acionar o mecanismo de condicionalidade, enviou cartas à Polónia e à Hungria a pedir informações sobre o Estado de Direito, o que é visto como o primeiro passo formal deste processo.

Não se sabe o que acontecerá nos próximos meses, existindo muitas variáveis: a decisão do tribunal, as eleições em França e na Hungria, a base de apoio do Governo polaco, entre outros. Mas há uma hipótese prevista no regulamento que, no limite, poderá ser explorada, ainda que os eurodeputados tenham diferentes interpretações sobre o seu significado na prática. Em causa está a proteção dos beneficiários finais (cidadãos ou empresas) dos fundos europeus e como o dinheiro lhes poderá chegar apesar de o Estado em que vivem ser considerado infrator.

A garantia da proteção dos beneficiário finais é um dos critérios que não só constam do regulamento, como foi reiterado pelo advogado-geral.

Paulo Sande

Especialista em assuntos europeus

“A garantia da proteção dos beneficiário finais é um dos critérios que não só constam do regulamento, como foi reiterado pelo advogado-geral”, assinala Paulo Sande, admitindo que “a questão é saber como é que isso se faz”. “É uma opção interessante, mas é preciso ver como se faz sem violar o ordenamento jurídico… não é fácil“, assume o especialista em assuntos europeus.

Mas aqui há diferentes ideias mesmo entre os eurodeputados que aprovaram o regulamento. Por um lado, Margarida Marques diz que é possível que a Comissão crie um mecanismo para entregar diretamente o dinheiro aos beneficiários finais, admitindo, porém, não se saber ainda como funcionará tecnicamente. A eurodeputada defende a ideia de usar esta solução de último recurso para quando o problema está no Governo e não nos beneficiários finais.

Já José Manuel Fernandes considera que tal não é possível e interpreta a legislação de forma diferente: “É o próprio Estado visado que tem de pagar diretamente aos beneficiários”, diz, argumentando que a Comissão “não pode passar por cima do Estado-membro pois estaria a pôr em causa o princípio da subsidiariedade”. “O que colocámos no Regulamento foi, havendo o avanço da Comissão quer para a suspensão ou até cortes de autorizações ou de pagamento, é o próprio Estado visado e infrator que deve pagar diretamente aos beneficiários“, garante.

José Gusmão está cético. “A sua aplicação prática dependerá sobre se é possível utilizar o PRR sem prejudicar as populações”, diz, afirmando ser “discutível que haja cobertura no regulamento para esse tipo de solução” e que essa solução “pode abrir um precedente para outras coisas” dentro da UE. Mas concorda que “a função das sanções deve ser de enfraquecer os protagonistas das violações e não dos reforçar”, pelo que o corte dos fundos não pode repercutir-se nos que já sofrem das violações do Estado de Direitos nesses países.

Independentemente do desfecho deste braço-de-ferro relativamente aos fundos europeus, a questão do Estado de Direito na Polónia e na Hungria não se esgotará. Este mecanismo foca-se exclusivamente na aplicação do dinheiro europeu, nomeadamente na fiscalização e no sistema judicial, e não deverá resolver outros problemas como a supremacia da lei europeia sobre a lei nacional, a ameaça aos direitos das minorias e à liberdade de imprensa, entre outros.

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