Autárquicas em Santa Maria da Feira: “fogaceiros” optam há 35 anos pelo bipartidarismo

Desde 1989 que não há um vereador "fogaceiro" fora do PS ou do PSD. Depois de 40 anos com apenas dois presidentes eleitos e sem nunca deixar de ser "laranja", o concelho vê chegar oito candidatos.

No concelho mais laranja do distrito de Aveiro, nem uma “Viagem Medieval em Santa Maria da Feira” permitiria encontrar um presidente da Câmara eleito por outro partido que não o PSD. Nunca, em quase 50 anos de eleições autárquicas, ganhou outro partido para lá do PSD. Nas últimas quatro décadas, apenas dois presidentes foram escolhidos pelos “fogaceiros”, e só uma vez o presidente da Câmara governou em minoria.

A primeira eleição autárquica de sempre em Portugal, em 1976, deu uma maioria relativa ao PSD, com os mesmos quatro mandatos que o PS e o CDS dono da nona cadeira da veração. Mas não se tome por certa a colaboração à direita. Aquele ainda era o CDS que em 1978 se uniu ao PS para governar o país, com o atual presidente da Câmara de Sintra, Basílio Horta, a assumir pelos democratas-cristãos a pasta do Comércio e Turismo no Governo de Mário Soares.

Um partido que, com Freitas do Amaral, “defendia a equidistância [como] valor fundamental para que o CDS chegasse ao poder. Ele defendia mesmo a constituição do partido como um partido de charneira”, asseguraria Manuel Monteiro em 1992, então acabado de chegar ao CDS, que depois tornou em CDS-PP.

Os comunistas tiveram um mandato em 1979, o CDS voltaria a eleger um vereador na década de 1980, mas a partir de 1989 Santa Maria da Feira tornou-se, simplesmente, um bastião do bipartidarismo com maioria do PSD.

Até 2001, a diferença para o PS nunca chegou aos 2.500 votos em quase 70 mil votantes, mas isso mudou nesse ano de má memória para os socialistas – quando perderam grandes câmaras como Lisboa, Porto e Sintra e um primeiro-ministro, António Guterres, que se demitiu devido aos resultados autárquicos.

Se até então a diferença fora sempre de apenas um vereador (tanto num figurino de nove vereadores como no de 11, que vigora desde 1997), em 2001 passou a 7-4. Nas autárquicas seguintes, a 9 de outubro de 2005, com o PSD nacional em turbulência a lamber as feridas da queda do Governo de Santana Lopes e da vitória de José Sócrates com maioria absoluta nas legislativas de fevereiro, os “fogaceiros” voltaram a equilibrar a balança, com uma vereação 6-5.

Ainda assim, os social-democratas mantinham-se a raiar os 50%. Os resultados não se alteraram sobremaneira até que em 2017, em novo ano crítico no PSD, com a “geringonça” no poder há apenas dois anos, os feirenses confirmaram sem sombra de dúvidas a força social-democrata. Mais de metade dos 72 mil votantes colocaram a cruz no quadrado “laranja” e a vereação voltou aos 7-4, desequilíbrio mantido em 2021.

No concelho onde milhares acorrem anualmente à “Viagem Medieval em Santa Maria da Feira”, apenas um partido tem conseguido lutar pela liderança com o PSD, mas há 49 anos que acaba, invariavelmente, batidoCâmara Municipal da Feira

Numa história que arrisca a monotonia, este ano há um elemento extra de interesse: nenhum dos candidatos ganhou eleições anteriormente. Em 2021, Emídio Sousa partia para o seu terceiro e último mandato, o qual não terminaria, preferindo responder ao convite do amigo Luís Montenegro para integrar o Governo da República.

No Executivo nacional eleito nas legislativas antecipadas de 2024, Emídio Sousa surgiu como secretário de Estado do Ambiente. Atualmente, é secretário de Estado das Comunidades. Candidato pela primeira vez há 12 anos, o mandatário concelhio da candidatura de Montenegro a presidente do PSD em 2020 chegou a ser vereador neste concelho onde nasceu em 1961.

Em março de 2024, Emídio Sousa, o segundo dos dois autarcas eleitos pelos feirenses desde 1985, renunciou ao mandato de presidente e entregou a chave da autarquia ao vice-presidente Amadeu Albergaria. É este a quem agora cabe defender o bastião social-democrata do distrito de Aveiro.

O próprio Emídio Sousa tinha feito a transição de vice-presidente do “dinossauro” Alfredo Henriques para presidente, mas apenas depois de se sujeitar a eleições.

Alfredo Henriques, hoje com 81 anos, transporta um legado dificilmente repetível, à luz da atual limitação de presidências consecutivas, governar uma Câmara Municipal durante 28 anos. Agora, com limites de mandato de 12 anos, será necessário a um autarca duas sequências de uma dúzia de anos, com um mandato de interregno, fazer uma sabática de mais quatro anos e depois voltar a candidatar-se. Naturalmente, em todo este percurso de quase quatro décadas seria necessário que os eleitores lhe dessem a vitória.

Europarque, no centro de lutas políticas históricas deste século

Do tempo de Alfredo Henriques como autarca, os mais importantes equipamentos foram o hospital e o Europarque, centro de congressos que este ano cumpre três décadas, das quais 10 anos sob gestão da autarquia.

Foi já com Emídio Sousa que o Governo de Pedro Passos Coelho entregou a gestão por 50 anos à autarquia, já depois de assumir uma dívida na ordem dos 30 milhões de euros da responsabilidade da Associação Empresarial de Portugal (AEP). O mesmo Passos realizou ali um mega-comício com alegadamente 6.000 pessoas, na corrida da coligação PÀF (Portugal à Frente, com PSD e CDS) às legislativas de 2015, que viria a vencer, contra o PS de António Costa, que à última hora desmarcou o comício que tinha agendado para o Europarque. Uma situação que nada tinha a ver com um eventual menor número de socialistas do que de social-democratas, assegurava à TVI um deputado eleito por Aveiro, Pedro Nuno Santos.

A Iniciativa Liberal é um dos partidos que escolhem o Europarque para grandes eventos. Aqui, Rui Rocha, atual candidato a presidente da Câmara de Braga, no VIII Convenção Nacional do partido em julho de 2024. MANUEL FERNANDO ARAÚJO/LUSAMANUEL FERNANDO ARAÚJO/LUSA

Dois anos antes, no XIX Congresso do PS, a família socialista foi àquela que tem sido casa de múltiplos eventos do PSD para aclamar o seu líder, António José Seguro. Nos discursos, ouviu-se um Pedro Nuno Santos ainda considerado da ala radical a opor-se ao “frentismo de centro” que seria o apoio do PS ao Governo PSD/CDS e um elemento da ala mais moderada, Álvaro Beleza, que se dirigiu assim a Seguro: “Conseguiste unir o partido como se vê hoje e vais unir Portugal. Sabes unir porque és honesto, és dedicado, és rigoroso, és atencioso […] tu és, além de tudo, uma pessoa excecional, um homem de caráter”.

Entre os presentes a apoiar o líder estava António Costa, que um ano depois deixaria a Câmara de Lisboa para se candidatar a secretário-geral do PS precisamente contra o agora candidato a Presidente da República, alegando que a vitória eleitoral socialista nas Europeias de 2014 fora por “poucochinho”.

As críticas atingiram, sem surpresa, o Governo de Passos, mas também Aníbal Cavaco Silva. Cavaco, à data Presidente da República, não era poupado, apesar de ter sido “padrinho” da construção do Europarque, que inaugurou em 1995. Foi precisamente nesse ano que deu aval estatal para financiamento da construção do maior centro de congressos do país.

Também aqui, a 12 de setembro último, o PSD apresentou a equipa de Amadeu Albergaria. “Queremos que os feirenses olhem para esta grande equipa e reconheçam nela homens e mulheres que representam honestidade, experiência, trabalho e proximidade. Cada um de nós está aqui por Santa Maria da Feira, pelas pessoas e pelo compromisso de continuar a cuidar de todas as freguesias. É isso que nos distingue e que nos move: servir com paixão e construir um concelho vibrante, um concelho em força”, disse então.

O seu principal adversário, Márcio Santos, advogado de 46 anos e vereador socialista na autarquia desde 2021, não coincide nos elogios. O recandidato à presidência já tinha estado como deputado municipal entre 2009 e 2013, mandato de equilíbrio de forças entre PS e PSD.

Uma das promessas de Márcio Santos é resolver a escassez de ligações por transportes públicos entre este que é o 18.º concelho mais populoso do país e as cidades de Gaia e do Porto. Para tal, quer o Metro do Porto a chegar a Santa Maria da Feira, salientando que no novo mandato começará “um novo ciclo de decisões políticas sobre investimentos públicos na Área Metropolitana do Porto, o que representa uma oportunidade estratégica” para levar o metropolitano de superfície àquele concelho do distrito de Aveiro.

Na luta estão ainda Eduardo Couto, que em 2021 se destacou a nível nacional pela juventude, aparecendo com 18 anos como candidato à Freguesia de Fiães, neste concelho. O Bloco de Esquerda coloca-o agora a votos como cabeça de lista para a Câmara, lugar que também pretendem o comunista Miguel Viegas, a liberal Carla Abreu, o centrista Frutuoso Tomé e os candidatos do Chega, Luís Santos (ex-presidente de Junta no concelho pelo PSD durante 12 anos), e do PAN, José Carvalho.

Num pequeno universo de cerca de 10% das câmaras portuguesas que nunca mudaram de cor partidária na presidência, Santa Maria da Feira continuará laranja?

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