É a Lei senhores, é a lei

  • Isabel Cipriano
  • 29 Outubro 2025

A “língua portuguesa fiscal” é excessivamente técnica, densa e difícil de compreender.

A língua portuguesa é reconhecida pela sua grande complexidade, tanto na estrutura como na expressividade. Possui uma gramática rica em tempos verbais, modos e concordâncias, o que oferece uma enorme precisão, mas também representa um desafio para quem a aprende — e até para os próprios falantes nativos. A variedade de vocabulário, as múltiplas exceções às regras e a influência de diferentes regiões e culturas tornam o português numa língua profundamente diversa, capaz de transmitir nuances subtis de pensamento e de emoção.

A designada “língua portuguesa fiscal” — ou seja, a linguagem usada em leis, regulamentos e comunicações da administração tributária — tem sido muitas vezes apontada como excessivamente técnica, densa e difícil de compreender.

Esta complexidade resulta de um esforço, que se compreende, em ser juridicamente precisa, mas acaba por afastar os cidadãos comuns, que se veem confrontados com frases longas, termos especializados e construções frásicas pouco claras. Resultado: é bem escrita, mas mal interpretada, porque falha frequentemente o objetivo de comunicar de forma acessível e transparente.

Quanto mais se tenta garantir precisão jurídica, mais se complica a comunicação com o público. Reformular e simplificar este tipo de linguagem seria um passo importante para promover uma relação mais justa e compreensível entre o Estado e os contribuintes.

Ah, mas a nossa Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) às vezes parece que também fez o exame nacional de Português neste ano, em que a média das classificações dos alunos desceu dos 12,6 para 10,5 valores, tal é a interpretação restritiva que faz da legislação em vigor!

Vamos então aos casos práticos: a Lei do Orçamento do Estado para 2025 introduziu uma isenção de IRS e de Segurança Social para os prémios de produtividade, de desempenho, lucros e gratificações, desde que pagos voluntariamente e sem regularidade, desde que se tenha verificado um aumento salarial de 4,7%, conforme previsto na medida de Incentivo à Valorização Salarial. O tal bónus apelidado de 15º mês. Simples, certo?

Mas não! No léxico da AT a palavra “isenção” parece ser equivalente a “hostil”. Resultado, sempre que se trata de “isentar” vamos lá definir – que é como quem diz, esmiuçar bem, a definição das “coisas”, “circunstâncias” ou “ações” que possam estar isentas.

O que são mesmo os prémios pagos de forma voluntária e sem caráter regular? Como se controla o aumento salarial de 4,7%? E apesar da isenção de IRS – que é aquela a que se refere o artigo 68º do CIRS – estes prémios estão sujeitos a retenção na fonte aquando do seu pagamento? Dito de outra forma, vamos ver se não isentamos coisa alguma.

Dúvidas desta intenção? Nesta semana, até porque caminhamos a passos largos para o final do ano, fomos brindados pela AT com o Ofício Circulado n.º 20284/2025, de 21/10, fazendo alusão a suscitadas dúvidas sobre a interpretação e aplicação da isenção em sede de IRS prevista no artigo 115.º da Lei n.º 45-A/2024, de 31 de dezembro – quase há um ano.

Assim, no entendimento da AT, esta isenção de IRS só se aplica aos prémios que não previstos nos contratos de trabalho e cuja “regularidade” não esteja conforme define o Código Contributivo, isto é, aplica-se apenas aos prémios que os trabalhadores não prevejam receber e que não sejam pagos mais do que uma vez a cada cinco anos.

Ora, o espírito da lei intuía uma isenção total deste “15º mês” com vista a “aumentar a produtividade com medidas como a isenção de contribuições e impostos sobre prémios de produtividade por desempenho no valor de até 6% da remuneração base anual (correspondendo, dessa forma, a um 15º mês, quando aplicado), até à diminuição da carga fiscal sobre as empresas.”, reduzindo a carga fiscal sobre o trabalho, através da “isenção de contribuição e impostos os prémios de desempenho até ao limite equivalente de um vencimento mensal.”

E não sendo o bastante, no caso destes prémios ainda estarem isentos, são sujeitos a retenção na fonte do mês do pagamento. Ora agora paga, e reclama o reembolso depois.
Mais uma vez, é caso para se dizer que “de boas intenções, o inferno está cheio”, porque senhores, há a Lei e a lei, vulgo ofício circulado.

  • Isabel Cipriano
  • Presidente da APOTEC – Associação Portuguesa de Técnicos de Contabilidade

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