Em mar de piranhas, jacaré nada de costas (V)

A longa lista de sítios desaparecidos, a longa mão dos impostos e a importância de dar a mão aos novos artistas.

Deve ser da idade, mas a lista de desaparecimentos de sítios onde fui feliz em Lisboa está em permanente atualização.

Os restaurantes Paris, Muni e Cervejaria Alemã onde ia com o meu avô, que tinha a particularidade de nunca se sentar à mesa sem antes visitar a cozinha; o Estúdio 444 onde cabiam exatamente 444 espectadores e assisti aos primeiros filmes de Eric Rohmer; a Valentim de Carvalho onde passava horas a ver e a ouvir discos de vinil; a Picadilly onde comprei as primeiras camisas com o meu pai; o Drugstore Tutti Mundi, o segundo centro comercial de Lisboa, inaugurado em 1968, onde ia frequentemente com a minha mãe.

Não quero maçar o leitor com uma peregrinação nostálgica e, talvez, inútil, e, por isso, fico-me pelas minhas deambulações juvenis. Não deixa, todavia, de ser irritante que estes e muitos outros sítios tenham, na sua grande maioria, sido substituídos por cadeias de fast-food, estabelecimentos de unhas de gel e fabricas de pastéis de nata para turistas.

Também não é minha intenção transmitir a ideia de que me tornei num velho do Restelo apesar de nunca ter vivido nesse bairro. Guardo estas boas memórias e outras: Sinto-me particularmente feliz por ter conhecido pessoalmente e apertado a mão ao grande Hector Yazalde, velha glória do Sporting, e ter assistido ao primeiro concerto da Sétima Legião.

Alguém disse que as memórias são como uma velha excêntrica que guarda trapos coloridos, deita comida fora e, às vezes, nos bate à porta. Recebi novamente a sua visita quando soube esta semana que a Comida Independente ia fechar as suas portas definitivamente. O projeto, liderado pela Rita Santos, era um bar de vinhos maravilhosos e raros, onde se comia a melhor sanduíche de pastrami de Lisboa, e, simultaneamente, uma loja que acolhia pequenos produtores de queijos, charcutaria, azeite, mel, conservas, oriundos de todo o país, e um espaço de tradições e de modernidade, de autenticidade, partilha e descoberta. A Comida Independente fazia ainda a curadoria do Mercado de Produtores que todos os sábados se reunia na freguesia da Misericórdia, em Lisboa.

É sempre assim: quando algo deixa de existir, lamentamos não ter contribuído mais para a sua existência e resistência. Não há grande moral nesta história, a não ser que a vida é uma sequência de desaparecimentos que culmina, como estamos todos fartos de saber, com o nosso. Entretanto, demos graças por ter boas memórias das coisas que acabam e das que continuam: E por termos tido a oportunidade de as viver.

A Comida Independente viveu sete anos na Rua Cais do Tojo, 28, em Lisboa. Espera-se que o que vier a acontecer naquele espaço no futuro, faça jus ao seu passado.

Uma questão de oportunidade

Diz-se que será para o ano que o Governo português poderá baixar o IVA aplicável à transação de obras artísticas.

A Itália de Giorgia Meloni acaba de o fazer, baixando a tributação da arte de 22% para 5%. Fê-lo na sequência de um manifesto assinado por 500 artistas italianos, entre os quais Michelangelo Pistolleto, Giorgio Griffa e Maurizio Catttelan, em defesa da indústria de arte contemporânea e que assinalava o risco de a Itália “perder uma parte relevante das suas empresas criativas e tornar-se um deserto cultural“.

A Itália juntou-se, assim, a países como a França e a Alemanha que, recentemente, baixaram substancialmente a tributação em sede de IVA sobre as obras de arte. Em Portugal, continua por transpor a diretiva europeia que permite reduzir a taxa de IVA sobre transações artísticas de 23% (a taxa máxima no nosso país, atualmente em vigor), para 6%.

Seria uma medida emblemática no sentido da promoção da Cultura, da sustentabilidade do ecossistema da arte contemporânea, libertando artistas, galerias e compradores de um garrote sem sentido. E uma boa forma de afirmação da ministra da Cultura e do compromisso do Governo com uma área fundamental para o desenvolvimento do país. Os mais pessimistas dizem que existem governos que não perdem uma oportunidade de perder uma oportunidade. Esperemos que não seja o caso do nosso.

O serviço público dos privados

Abro uma exceção para falar do sítio onde trabalho. A Fundação EDP criou há 25 anos o Prémio Novos Artistas. Mais importante do que isso: manteve-o, investindo numa missão clara de descobrir e valorizar novos talentos da arte contemporânea.

Os nomes dos vencedores deste prémio ao longo dos anos são o melhor testemunho da sua relevância: de Joana Vasconcelos a Carlos Bunga, passando por Vasco Araújo, Diana Policarpo, Adriana Proganó e Leonor Antunes, entre muitos outros.

Esta semana, o júri de premiação, de que fiz parte, escolheu mais um vencedor, Alice dos Reis, e uma menção honrosa, Sara Chang Yan. Os seis finalistas, que tiveram a oportunidade de expor os seus trabalhos no MAAT, saíram de uma longa lista de mais de 600 candidaturas. Para quem alimenta teorias da conspiração sobre as fundações, aqui tem um exemplo, entre muitos outros, de serviço público conduzido por uma fundação privada.

A exposição do Prémio Novos Artistas está patente no MAAT até 9 de setembro de 2025. Apresenta trabalhos de Alice dos Reis, Evy Johkova, Francisco Trepa, Inês Brites, Maja Escher e Sara Chang Yan.

  • Colunista regular. Diretor Geral e Administrador da Fundação EDP

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