“Lego” nas casas municipais: resposta à crise na habitação sem tijolos nem trolhas

O "Lego" chegou às casas com que as câmaras combatem a crise na habitação e há uma indústria nacional a ser erguida nessa tecnologia. Visitámos dois edifícios municipais e contamos o que vimos.

A construção modular usa vários modelos e está a atrair empresas portuguesas para esta faceta mais industrial da construção civil. Há potencial para envolver novos setores, designadamente a fileira florestalHugo Amaral/ECO

A construção modular entrou no discurso político nacional há dias com a proposta do secretário-geral do PS para que o país aposte nesta tecnologia, mas pelo país as autarquias e empresas já estão passos à frente e preparam a inauguração de centenas de casas e quartos de residências universitárias neste modelo. O ECO/Local Online foi ver como se faz um prédio municipal com poupança até metade do tempo de construção.

Com a tecnologia modular, os camiões carregados de materiais de construção e as carrinhas com trabalhadores diariamente a caminho da obra invertem a marcha e, no lugar de se dirigirem ao local onde nascerá o edifício, rumam às fábricas que criam habitação com blocos “de Lego” – mais ou menos autossuficientes, segundo a tecnologia. Ao mesmo tempo que se fazem partes fundamentais dos edifícios em local de obra, como o assentamento do edifício, fundações e muralhas (dependendo da complexidade do edifício e se têm ou não garagem, têm maior ou menor parcela em betão armado), nas fábricas produzem-se paredes exteriores e lajes, bem como os interiores e revestimentos. Tudo em simultâneo e, em alguns processos, com robots 24 horas por dia.

No município onde residem mais cidadãos por metro quadrado em Portugal, e onde a pressão na procura de habitação não deixa de bater à porta da autarquia (a tal ponto que a autarquia não consegue aproveitar a prerrogativa dada pelo PRR de aquisição de imóveis no mercado para arrendamento no âmbito do programa 1.º Direito), os moradores do Cerrado da Mira, num dos pontos mais elevados da Amadora, viram, em menos de um mês, erguer-se um edifício de três pisos a partir do R/C.

O período total empregue no desenvolvimento deste projeto é, em números redondos, de 540 dias, 90 para projeto e 450 para execução, a qual o presidente da Câmara da Amadora espera ver reduzido, para poder entregar as primeiras chaves antes do fim do primeiro semestre (o prazo do PRR para os edifícios pagos por este mecanismo europeu criado como resposta à crise económica criada pela pandemia obriga a ter as famílias dentro das suas casas até final de julho).

Numa construção convencional, o período de construção superaria os 700 dias, aponta Miguel Barata, diretor de produção da Casais, que acompanha o ECO/Local Online na visita ao edifício.

Vítor Ferreira, presidente da autarquia, explica que aquando da análise na Câmara sobre o aproveitamento do PRR para habitação municipal “o busílis era mesmo o timing” e levou imediatamente a optar pela construção modular.

O Executivo da Amadora analisou a solução para ter a obra pronta até junho de 2026 e a escolha recaiu sobre a conceção/construção. Ao empreiteiro foi dada a informação do pretendido segundo os parâmetros do PDM – volumetria, afastamentos no limite do lote, implantação do edifício, número de pisos, etc – e os proponentes apresentavam a sua proposta com projeto e custo de obra respeitando as premissas exigentes do PRR, designadamente a nível de eficiência energética, estrutura anti-sísmica e sustentabilidade.

“Está provado que é possível construir numa solução destas cumprindo os prazos, com rapidez, eficiência de custos, segurança e na qualidade. Num resultado final com sustentabilidade ambiental, por não haver desperdícios”, salienta Vítor Ferreira.

O sistema industrial Cree, aqui utilizado, tem a mão da Casais, a partir da tecnologia desenvolvida por uma empresa austríaca onde o grupo português se tornou acionista, e que tem parceiros de Singapura e Japão aos EUA e Canadá, passando por quase duas dezenas de países na Europa. Estes podem ou não dispor de uma fábrica local, como detalha ao ECO/Local Online o presidente da Casais, António Carlos Rodrigues.

No caso da empresa de Braga, tal como acontece com o ator da Alemanha, dispõe da Krear – unidade fabril em Estarreja onde são feitos os painéis de betão das fachadas, numa sociedade da Casais e da Secil -, e um complexo na capital minhota onde agregou três fábricas por si detidas. Além disso, usa também a capacidade produtiva de fornecedores portugueses, localizados em Fátima e Setúbal – “capacidade instalada que estamos a aproveitar e mobilizar”, nota o presidente do grupo.

A tecnologia tem potencial para chamar mais agentes económicos nacionais, designadamente produtores florestais que se dediquem a novas espécies, como o pinheiro dos países nórdicos utilizado no glulam. Este processo de agregação de madeira, que permite construir edifícios em altura até dezenas de pisos, é empregue em pilares e vigas como substituto do betão armado e vem já montado nos painéis provenientes de fábrica.

“É necessária madeira certificada em Portugal”, insta Miguel Barata, notando que a Carmo Woods, fornecedora do glulam utilizado pelo grupo bracarense, é obrigada a importar madeira e maquinaria. “Não há madeira em Portugal para certificar assim”, assegura o engenheiro.

Com tradição na construção convencional de alvenaria, e com uma prática crescente no método modular desde a primeira obra edificada já nesta década, a Casais consegue ver ambos os lados da parede, e é nessa qualidade que perguntamos a António Carlos Rodrigues quais as diferenças mais notórias entre métodos.

Na mais recente aposta, há menor dependência da mão-de-obra in situ, com o que isso representa na qualidade de vida dos trabalhadores, que deixam de andar com a “casa às costas” entre cada região onde o grupo conquista empreitadas, reduzindo-se ainda a probabilidade de acidentes de trabalho no ambiente controlado de fábrica. Para a empresa, poupa-se logística e custos de transporte e alojamento.

E, adicionalmente, contorna-se a dificuldade de contratação de uma série de profissionais em falta no país para as obras convencionais, designadamente engenheiros e encarregados de obra. Estes trabalhadores mais bem remunerados acabam por ficar nas obras de reabilitação, onde a Casais consegue praticar preços de empreitada superiores aos de concursos públicos como os efetuados no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).

Podemos estar a aumentar a produtividade em dez vezes, porque substituímos mão-de-obra pouco qualificada, e que às vezes executa trabalho em condições pouco produtivas, para uma solução em que há mais emprego de equipamento e um ambiente mais controlado

António Carlos Rodrigues

Presidente do Grupo Casais

Acrescem a rapidez e o valor acrescentado do trabalho humano na construção modular, porque, nota António Carlos Rodrigues, “o tijolo é um produto de baixo valor acrescentado. Uma hora de trabalho produz poucos metros de parede. Quando passamos para fábrica com componentes maiores – paredes, módulos –, todo esse valor acrescentado multiplica por várias vezes. Podemos estar a aumentar a produtividade em dez vezes, porque substituímos mão-de-obra pouco qualificada, e que às vezes executa trabalho em condições pouco produtivas, para uma solução em que há mais emprego de equipamento e um ambiente mais controlado”.

Em Beja, por exemplo, onde a Casais construiu uma residência universitária pública com 400 quartos, o pico de obra teve 90 trabalhadores. Numa empreitada convencional seriam 200, calcula o CEO da empresa. “O que a tecnologia traz de desafio logístico, com o transporte de grandes volumes até ao local de obra, mais que é compensado na produtividade”, explica o gestor.

Além da produtividade, potencia-se a igualdade de género, quebrando um registo cultural histórico da construção civil. Só na fábrica onde se desenvolvem os interiores dos edifícios, a Blufab, um quarto da mão-de-obra é feminina, realça Miguel Barata.

Em aço e em blocos

Este método não é a única solução alternativa à tradicional construção em alvenaria com betão e tijolo. Em Alcanena, município com maior investimento per capita em habitação no país, conforme afirmou o Governo há um ano, aposta-se em erigir edifícios no modelo de construção industrializada, num modelo pré-fabricado em aço, solução em curso para 105 fogos em quatro localidades do concelho (galeria de fotos abaixo).

Neste caso, conforme explica Rui Anastácio, autarca, ao ECO/Local Online, trata-se de uma empreitada de 11 milhões de euros, o que se traduz em cerca de 100 mil euros por fogo.

Outro modelo é o usado em Benfica, a única Junta de Freguesia que se lançou na construção pública. Aqui, a estreia na construçao modular surgiu numa residência universitária inaugurada em outubro de 2024.

Agora, tem em construção um edifício de 5 pisos e 50 apartamentos, num custo de construção 5,77 milhões de euros, numa média por fogo em torno dos 115 mil euros (a que acresceria custo de lojas e garagens, caso existissem, e cerca de 50% no terreno, não fosse este já municipal). Os inquilinos serão famílias de classe média que pagarão renda a custos acessíveis à Câmara.

Benfica, que, com o PRR, tem um orçamento de 60 milhões de euros (apenas 10% menos que o do concelho de Alcanena, que tem o segundo maior orçamento entre os 11 concelhos do Médio Tejo), irá disponibilizar 220 apartamentos para arrendamento acessível, sejam em edifícios novos erigidos em construção modular, seja em apartamentos e prédios adquiridos por toda a freguesia, igualmente com dinheiro do PRR. A sua primeira experiência foi a residência universitária com 120 camas, inaugurada há um ano, investimento de quatro milhões de euros.

O timing foi fator importante [para escolha da solução de construção modular utilizada na residência universitária]. Tivemos várias propostas, também aço leve, na altura pareceu-nos a mais rápida. Os três concursos que lançámos foram ganhos por construção modular

Ricardo Marques

Presidente da Junta de Freguesia de Benfica

Ricardo Marques, presidente da Junta socialista, guia-nos pelo edifício e nota que sob os pés está uma galeria técnica na parte inferior do edifício onde se acede aos elementos técnicos do edifício, dispensando intervenções de pedreiro em paredes caso surja alguma rutura de canalização, por exemplo. O edifício recupera águas cinzentas para “mini-ETAR”, destinadas à rega de jardins.

Na decisão por construção modular, “o timing foi fator importante. Tivemos várias propostas, também aço leve, na altura pareceu-nos a mais rápida. Os três concursos que lançámos foram ganhos por construção modular. Com os valores a que temos lançado os concursos – o último dos quais até foi o mais elevado, a 1.277 euros por metro quadrado de área bruta no edifício com 50 apartamentos – e com os timings de PRR, só a construção modular é que se ‘atirava a isso’. Alvenaria clássica não, não têm tempo. Nós colocámos o timing e as multas por incumprimento são muito elevadas”.

No caso deste novo edifício de habitação municipal com 50 apartamentos, toda a edificação, incluindo fundações, tem um prazo de execução de 12 meses.

Ao contrário do utilizado no edifício habitacional da Amadora, em Benfica recorre-se a tecnologia autoportante, batizada de SiMBA (Sistema Construtivo em Blocos Autoportantes de Betão Armado). Aqui, o modelo é mais aproximado às criações da “Lego”: blocos construídos em fábrica, já com cozinha e casas de banho integralmente equipadas, e que são descarregados e agrupados/empilhados por grua em obra.

A tecnologia não é, contudo, imune a limitações, entre as quais se conta a arquitetura. Exemplo disso, num segundo edifício habitacional que a Junta de Benfica tem em desenvolvimento, com 18 apartamentos, a varanda redonda do projeto foi preterida, a favor de uma estrutura retilínea, por indisponibilidade das empresas concorrentes em adotar essa tipologia pelo preço de adjudicação pública, conta Ricardo Marques. No caso desta autarquia, a engenharia está a cargo a DDN e o fabricante do sistema é a Global Engineering, com fábrica no Montijo. Na promoção da sua tecnologia, e a título de exemplo, prometem a edificação em local de obra de 52 apartamentos T0 em cinco semanas – prazo a que se soma o fabrico.

A mesma empresa Global Engineering é responsável por 30 fogos em Alcácer do Sal para habitação social (ao abrigo do programa 1.º Direito, lançado em 2018 para fazer face a carências de habitação em condições dignas e, entretanto, reforçado com o surgimento do PRR). Neste caso, para oito blocos de dois pisos, com quatro T3, 12 T1 e 14 T2, a autarquia investiu cerca de 3,7 milhões de euros, incluindo arranjos exteriores, numa média a rondar, uma vez mais, os 100 mil euros por fogo.

Em ambos os modelos, as empresas fabricantes asseguram existir uma redução do desperdício habitual na construção convencional – quando se verificam sobras de tijolo, betão, tubagens e cerâmicas, por exemplo. Aqui, há vantagens económicas e ambientais, realçam os promotores, em defesa da sua dama.

Há “Legos” de Norte a Sul

Na Amadora, o edifício que visitamos na companhia do autarca e de dois técnicos da Casais estava nesse dia a receber as paredes do piso 2. Henrique Nunes, diretor de obra da Casais, pormenoriza o que estamos a ver: as vigas e os pilares são de madeira, aponta, e as gruas estão a transportar painéis, fachadas e lajes pré-feitos em fábrica e acoplados um a um, como num puzzle.

As fundações, muralha de sustentação da cave, primeira laje e escadas construídas em betão tiveram construção no local, nota Henrique Nunes – nos edifícios com elevador, também a caixa deste é construída, fazendo parte, tal como a caixa das escadas, da estrutura anti-sísmica.

[A construção modular] não significa edifícios feios ou menos atrativos. Tenho estado em contacto com arquitetos de renome internacional, bem conhecidos de toda a gente, e que estão a abordar a construção modular como solução para os seus projetos

António Carlos Rodrigues

Presidente do Grupo Casais

As lajes acima, as paredes exteriores e interiores são pré-fabricadas em fábrica e montadas por grua em obra. A construção engloba três fases, a última das quais já incluirá o trabalho interior em pisos que, nesta primeira fase que visitámos, são absolutos open spaces apenas com marcações no piso a assinalar o ponto onde encaixarão as paredes (devidamente revestidas).

Os acabamentos encerram uma das várias mais-valias: no caso do assentamento de cerâmicas nas paredes de uma casa de banho, o trabalho é feito na vertical, no sentido do piso até a uma altura geralmente entre dois e três metros, e exige “ginástica” do trabalhador. Nos painéis de paredes montados em fábrica o azulejo é assente em bancadas na horizontal e trabalhado com maquinaria industrial para efetuar os orifícios destinados a torneiras, dispensando o processo mais artesanal feito em obra e que exige a destreza manual que a maquinaria industrial dispensa.

Para que se perceba o potencial de poupança de tempo de trabalho em obra, numa semana montam-se no edifício mais de 20 casas de banho pré-fabricadas. Entre as vantagens está o trabalho em tandem: enquanto a obra in situ se iniciava na Amadora e eram executados os movimentos de terra e as fundações, os trabalhadores estavam a fazer os módulos em fábrica. São estes que vemos a ser posicionados sem necessidade de esperar por constrangimentos como o designado tempo de cura, que corresponde à secagem do betão de pilares e lajes ou do assentamento de tijolo nas paredes e da cobertura (reboco). Adicionalmente, na fábrica, os robots não pedem folga ou descanso, produzindo painéis durante as 24 horas do dia.

O edifício do Cerrado da Mira, na Amadora, já com a sua configuração exterior finalizada, um trabalho de “Lego” de escassas semanas que poupou mais de um mês de trabalho em obra só ao evitar as esperas entre pisos para secagem de betão de lajes e pilares na construção convencional (foto CM Amadora)

Cerca de uma semana é o tempo despendido na montagem um piso de 800 metros quadrados (para 16 apartamentos cada), asseguram os engenheiros da Casais, grupo que, além da Amadora, tem obra habitacional em construção modular na cidade de Gaia e em Valongo, para lá de residências estudantis, designadamente o edifício de 1 5 mil metros quadrados com cerca de 500 quartos e 800 camas que está em construção na antiga Fábrica Confiança em Braga. Também a residência do ISCTE em Sintra, com 197 camas, está a ser edificada pela Casais neste modelo.

A nível mundial, entre as obras de referência com a tecnologia Cree está o campus da sede da Siemens na Alemanha.

Não tem de ser feio

A arquitetura não é um ponto alto deste edifício amadorense destinado a renda social e com predominância de apartamentos T1, 46 entre o total de 48 fogos – a estratégia da autarquia socialista é deslocar para as novas casas inquilinos seus de famílias com apenas um ou dois membros e, nos apartamentos de maiores tipologias que vagam, atribuir a agregados mais numerosos, maximizando assim o espaço no novo edifício.

Contudo, é tudo uma questão de preço, destaca o CEO da Casais. A construção modular, assegura, “não significa edifícios feios ou menos atrativos. Tenho estado em contacto com arquitetos de renome internacional, bem conhecidos de toda a gente, e que estão a abordar a construção modular como solução para os seus projetos”.

Exemplos disso, ateliers internacionais como Effekt e Gensler, esta uma empresa com 60 anos presente em 16 países e com uma faturação que em 2024 atingiu 1,5 mil milhões de euros. “É o maior gabinete do mundo e tem estado em contacto connosco”.

“Os edifícios continuam a poder ser únicos, tem quem os concebe de saber juntar as peças quase como se fala de um Lego. A peça é standard, mas podemos fazer muitas coisas diferentes e cada um pode pôr a sua personalização”, explica o presidente da Casais.

Exemplo disso, um edifício como o de habitação social na Amadora poderá ter um exterior de aparência modesta ou ficar revestido com o mais requintado mármore ou a mais sumptuosa madeira. O preço é que dificilmente se enquadraria nas exigências da construção pública.

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