Com a “ajuda” da autarquia de Oeiras o cartaz sobre abusos na Igreja originou 291 notícias
Foram publicadas 291 notícias sobre os cartazes a lembrar vítimas de abuso. Ao tirar o cartaz, Oeiras fez "um total disparate" em termos de comunicação e amplificou a mensagem, dizem os especialistas.
Duzentas e noventa e uma notícias. Entre televisão, Imprensa, rádio e online, são 291 as notícias que referem os três outdoors sobre as vítimas de abusos sexuais na igreja católica em Portugal colocados no madrugada de quarta-feira em Lisboa, Loures e Algés. Enquanto o da Alameda, em Lisboa, e o de Loures permaneceram nos locais nos quais foram colocados, a autarquia de Oeiras mandou retirar o outdoor na tarde de quarta-feira. Estava criada a polémica, nas redes sociais e nos media, com a Câmara de Oeiras e erguer novamente a lona, agora numa estrutura da autarquia, na noite de quinta-feira.
“Até ao momento encontrámos 291 notícias (Imprensa, tv, rádio e online) que referem os outdoors das JMJ. Estas notícias representam um AAV (Advertising Automatic Value) de aproximadamente sete milhões de euros“, avança Pedro Ladeira, senior vice president Portugal & Mediterranean Region da Cision, que a pedido do +M analisou o número de notícias publicadas sobre o tema. Estas notícias, 291, são as publicadas entre o dia 2 de agosto e as 11h de sexta-feira, 4 de agosto.
“Todas mencionam os outdoors, no entanto, algumas delas, mencionam em simultâneo outros tópicos relacionados com a JMJ/visita do Papa. Este facto é ainda mais notório na informação de TV”, esclarece o responsável. “É importante realçar que, embora as notícias tenham referências ao assunto, não significa que estas são exclusivamente relacionadas com este. Este facto é ainda mais importante nas notícias de TV, já que existem blocos de vários minutos sobre a visita do Papa em que o assunto foi mencionado apenas numa parte da notícia“, reforça Pedro Ladeira.
Os sete milhões de euros – a preços de tabela – são apenas um valor de referência e não foi aplicada a advertising equivalent value, métrica utilizada pela multinacional que mede exatamente o valor da referência ao assunto em análise, esclarece o responsável. Mas não deixa de ser um número impressionante.
“É um disparate total do ponto de vista de comunicação e contrário ao espírito da Jornada Mundial da Juventude (JMJ)”
“Não tenho qualquer dúvida de que a Câmara Municipal de Oeiras [CMO] deu uma grande ajuda à amplificação da mensagem“, assegura Maria Domingas Carvalhosa, CEO da Wisdom. O comentário é feito já na noite de quinta-feira, depois de +M ter avançado que a autarquia ia novamente colocar a lona a lembrar as “mais de 4800 crianças abusadas pela Igreja Católica em Portugal”, como se lê no memorial escrito em inglês, desta vez visível numa estrutura da autarquia, situada na rotunda de Algés.
A estrutura na qual a lona começou por ser aplicada terá sido retirada pela autarquia, que perto desta colocou um novo outdoor, agora com uma mensagem de boas-vindas ao Papa Francisco. A CMO diz ao +M desconhecer os donos da estrutura, ilegal, retirada esta madrugada e os membros do movimento cívico que criaram o memorial, e que terão pago pelo espaço, também optaram por não dizer qual foi a empresa à qual contrataram o aluguer do espaço.
“O tema dos outdoors ilegais é sério, mas a oportunidade é absolutamente contraditória com o espírito de inclusão, liberdade e abertura da JMJ e do próprio Papa Francisco“, começa por afirmar José Bourbon-Ribeiro sobre a retirada do outdoor em Algés. “A Câmara de Oeiras tentou ser mais papista do que o próprio Papa”, afirma o CEO da Hill+Knowlton Strategies Portugal, fazendo uso da expressão popular que neste caso pode ser interpretada à letra.
“É um disparate total do ponto de vista de comunicação e contrário ao espírito da Jornada Mundial da Juventude [JMJ]“, prossegue em conversa com o +M, acrescentando que a “JMJ respira tolerância, representa uma Igreja aberta e que quer sarar as feridas. Sarar as feridas não é escondê-las”, diz dando como exemplo o próprio Papa Francisco, que já se referiu e recebeu vítimas de abusos da Igreja em Portugal.
“É um atropelo da liberdade de expressão. A estrutura até podia ser ilegal, mas não era o momento para tratar disso. Num momento em que a JMJ, o Papa e a Igreja apelam à tolerância, retiraram (a lona) porque acharam que não fica bem?“, questiona.
“A comunicação tem que ter em atenção todas as dimensões da ação. Foi um erro monumental“, reforça o responsável da agência de comunicação. “Ainda bem o município de Oeiras não representa nem a Igreja nem o Papa”, resume José Bourbon-Ribeiro. ”
Maria Domingas Carvalhosa recua uns dias. “A ideia da produção e colocação e até o próprio financiamento destes três cartazes nasceu no âmbito de um grupo de algumas centenas de pessoas que, na rede social X (antigo Twitter), se colocaram numa posição de grande contestação à Jornada Mundial da Juventude. Na realidade, diariamente, contestam as JMJ nas mais variadas vertentes. Tomaram, entretanto, a iniciativa de assinalar essa contestação publicamente através da colocação de um cartaz/memorial, com os números de abusos apresentados no Relatório da Comissão Independente, em três outdoors”, recorda.
Estamos perante um estudo de caso de comunicação conhecido como ‘Efeito Streisand’ e que consiste num fenómeno em que a supressão de um conteúdo ou informação faz com que eles se tornem mais visíveis.
“Estão no seu direito e não me parece possível bloquear esse direito sem violar a liberdade de expressão. Aliás, a própria Igreja, pelas palavras do Cardeal Patriarca, em conferência de imprensa, quando questionado, também referiu a importância do respeito pela liberdade de expressão”, acrescenta a também presidente da Associação Portuguesa das Empresas de Conselho em Comunicação e Relações Públicas (APECOM).
Ora, a reação da autarquia, ao retirar o cartaz, só amplificou a polémica. “Estamos perante um estudo de caso de comunicação conhecido como ‘Efeito Streisand’ e que consiste num fenómeno em que a supressão de um conteúdo ou informação faz com que eles se tornem mais visíveis. Este efeito nasceu de uma ação judicial colocada, em 2003, por Barbara Streisand ao fotógrafo Kenneth Adelman pela captura e publicação no seu site de uma foto que integrava a sua casa. Até à interposição da ação pela atriz, apenas seis pessoas tinham consultado o site, depois, em apenas um mês, 420 mil pessoas já conheciam a sua habitação”, enquadra Maria Domingas Carvalhosa.
“Este tema estava a ser discutido numa rede social, divulgado por meia dúzia de meios de comunicação social, os outdoors teriam um impacto relativo e a remoção do cartaz, por questões jurídicas, catapultou o tema para a agenda mediática nacional, para as televisões e até para o comentário político. Passou a ser o tema“, resume a especialista em comunicação que, tal como José Bourbon Ribeiro, defende não ser a altura certa para a autarquia se preocupar com a irregularidade ou ilegalidade relativamente ao suporte do outdoor.
“O cartaz é péssimo, a ideia é péssima, a decisão política é péssima e voltar atrás é péssimo. É uma história demonstrativa de como vai o mundo”
A Câmara Municipal de Oeiras “deveria ter resolvido a questão logo na primeira fase oferecendo um suporte alternativo, como o faz agora, evitando toda esta mediatização da sua ação”, defende.
“O cartaz é péssimo, a ideia é péssima, a decisão política é péssima e voltar atrás é péssimo“, caracteriza por seu turno Vítor Cunha, administrador da JLM&Associados.
Dizendo não querer “contribuir para a silly season“, época tradicionalmente com poucas notícias, pelo que pode ser dado maior destaque a temas que em outras ocasiões não o teriam, o administrador da agência não deixa de caracterizar esta como uma “história demonstrativa de como vai o mundo“. “Meteram logo os pés pelas mãos [a CMO]. O poder político está completamente volátil à pequena pressão da opinião pública. Formulação de decisão e a opinião política são pura gelatina“, constata.
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