A publicidade “perdeu o lugar à mesa”?
Segmentação, IA, digitalização e conteúdos foram alguns dos temas em debate numa conferência que reuniu profissionais do setor para uma reflexão sobre a história e o futuro da publicidade.
A publicidade perdeu relevância e “perdeu o lugar à mesa”, afirma Pedro Bidarra, consultor independente de brandinge comunicação, numa mesa redonda que decorreu no âmbito da conferência “A História e o Futuro da Publicidade”, organizada pela Fundação Amélia de Mello, no Centro Cultural de Belém.
Segundo Bidarra esta é uma situação que “tem a ver com muitas questões”, como o facto de existirem novos concorrentes, uma fragmentação dos meios e uma diminuição de orçamentos. O ex-diretor criativo da BBDO lembrou que antigamente muitos dos profissionais que chegavam ao posto de CEO tinham começado as suas carreiras no marketing, algo que atualmente já não acontece. O exemplo mostra como o panorama mudou, ilustra.
Para Bidarra, uma das grandes questões no futuro da publicidade será escolher os “grupo alvo” da comunicação, até porque deixou de haver o “assunto comum”, como existia antes, e que permitia a existência de marcas globais. Segundo Bidarra, quando há cada vez mais nichos torna-se também cada vez mais difícil para uma marca sair desse nicho, prevendo uma crescente fragmentação das marcas e uma diminuição das marcas globais.
Recentemente não surgiram muitas marcas globais, afirmou Pedro Bidarra, e as que existem atualmente são sobretudo as antigas, que dispõem de relações emocionais e valores partilhados com os consumidores. A segmentação, do ponto de vista estratégico, “é se calhar o maior desafio” para o futuro das marcas e da publicidade, defendeu.
Outro dos oradores, Vasco Thomaz, fundador e diretor criativo da Judas, concorda que a segmentação é de facto um desafio, mas considera-a também “uma belíssima oportunidade” para os “underdogs“ aparecerem e ganharem espaço. Vasco Thomaz disse preferir olhar para a segmentação e digitalização como uma oportunidade para marcas mais pequenas aparecerem, sendo esse um “desafio estratégico”.
Já para Hélia Gonçalves Pereira, reitora da Universidade Europeia, “é impossível dizer que a publicidade perdeu a relevância“. Esta deve é ser feita de maneira e através de plataformas diferentes e dirigida para um “coletivo que é cada vez menos coletivo, pela necessidade que cada um de nós tem de se sentir único e exclusivo”.
Segundo a também docente, os consumidores são cada vez mais formados e tecnológicos, sendo “cada vez mais difícil comunicar da perspetiva tradicional” – de uma forma unidirecional, de uma entidade “poderosa” (anunciante) para alguém que apenas pode escutar. “Hoje existe uma multidimensão de direcionalidade nestas mensagens e é nesse sentido que as marcas se têm de preparar”, acrescentou.
Já para Ricardo Tomé, head of digital da Media Capital, a forma de comunicar das marcas também mudou bastante. Antes uma marca “apostava tudo” em uma ou duas grandes campanhas por ano, enquanto atualmente é necessário comunicar todos os dias, o que levou a que as empresas tivessem criado novas funções precisamente para a criação de conteúdos.
Segundo o head of digital da Media Capital, hoje a preocupação com o conteúdo e criatividade é diária, diz a propósito por exemplo das redes socais, e papel humano e das agências é “crítico” para conseguir criar “sentido neste labirinto”. É necessário que “isto tudo faça sentido” e “exista uma narrativa para no final do dia o consumidor ficar com uma ideia na cabeça”, reforça.
Hélia Pereira concordou com a ideia, defendendo que a publicidade passa muito por ter uma linguagem adequada para diferentes públicos em diversos formatos.
“Um dos grandes desafios para as marcas e agências que com elas trabalham é não só conseguir trabalhar esta miríade de plataformas e ferramentas que têm à disposição, como também saber reagir de forma coerente à forma como aqueles que estão a ser impactados pelas mensagens reagem“, explicou a reitora da Universidade Europeia.
Quanto à televisão, enquanto veículo de comunicação e de publicidade, Ricardo Tomé defendeu ainda que esta não vai acabar, na medida em que uma marca para “chegar ao seu pleno potencial” e à “esmagadora maioria dos portugueses”, tem de o fazer também através da televisão. “Não chega o resto e, desse ponto de vista, a produção de conteúdos televisivos ou audiovisuais claro que tem futuro“, defendeu.
Sobre a adoção da inteligência artificial no setor, a perspetiva é otimista. O diretor criativo da Judas não considera que esta traga a “morte dos criativos” – tal como já foi apregoado -,defendendo que existe sempre um lado humano na criatividade que não pode ser substituído pela tecnologia ou pelas máquinas, as quais no entanto podem ajudar na otimização de processos de forma a “poupar tempo para que se possa dedicar mais tempo ao que importa, que é a criatividade”.
Já Ricardo Tomé acrescentou que esta tecnologia vai permitir, a título de exemplo, a produção de anúncios dobrados, tornando possível acertar os movimentos labiais com a fala. “Podemos ter George Clooney num anúncio da Nespresso a falar português”, deu como exemplo. Para o head of digital da Media Capital, no entanto, o mais “interessante” será a substituição de figuras humanas por figuras que não se sabe se são humanas.
“Entre o papel que a inteligência artificial vai ter para gerar conteúdos ou até para criar interface, isto é só a ponta do iceberg“, acredita.
No futuro, a publicidade vai passar toda para digital e os intervalos vão passar a “breaks”, defendeu também Ricardo Tomé, que considera que a publicidade vai continuar a evoluir até daqui a dez anos passar a ser digital, incluindo na televisão, onde os atuais “intervalos” vão desaparecer e dar lugar a “breaks”, como acontece noutras plataformas como o YouTube ou nas gravações, com o formato Playce.
O anúncio vai deixar de ser colocado no intervalo para passar a ser inserido junto ao conteúdo, defendeu o head of digital da Media Capital, acrescentando que a televisão, enquanto veículo espaço publicitário, também já está a mudar, pelo que “será natural” que daqui a uns anos exista uma colocação de mensagens publicitárias de forma digital e num espaço programaticamente reservado.
Segundo Ricardo Tomé, muitas vezes mistura-se a digitalização do processo com a digitalização da criatividade, algo que está a duas décadas de poder ser concebido, argumentou. O que vai acontecer num futuro próximo é a digitalização do processo, com a migração dos orçamentos para sistemas digitais, mas a criatividade “vai claramente continuar a ser desenhada humanamente”.
Vasco Thomaz defendeu ainda na conferência que os jovens criativos que hoje chegam às agências também são diferentes. Quando começou a trabalhar, recorda, os profissionais tinham o objetivo de fazer carreira, fazendo horas e noitadas se preciso. Agora o “mindset” e “drive” da nova geração é diferente, defendeu.
“São mais livres, não têm ambição de fazer carreira no próprio sítio. Cabe-nos a nós aprender a lidar com isso e arranjar outras maneiras de os prender e de os ter ao nosso lado para enfrentar a batalha“, disse o diretor criativo da Judas.
A mudança na cultura das empresas, ou a criação de uma cultura de empresa, faz então parte da equação, adverte, exemplificando com a Judas, que não tem trabalhadores a recibos verdes – quando a área era uma “máquina trituradora de pessoas a recibos verdes e de estágios”, defendeu.
A conferência teve como ponto de partida o lançamento dos livros “História da Publicidade em Portugal – Com Estudo de Caso do Grupo CUF” e “História Ilustrada da Publicidade em Portugal”, de Eduardo Cintra Torres.
Dividida em dois volumes (texto e ilustrações), a obra recorre ao antigo Grupo CUF (Companhia União Fabril) como caso de estudo e é o resultado de uma investigação de cerca de cinco anos, sendo a primeira obra “aprofundada, abrangente e de caráter científico” sobre o tema a ser editada em Portugal. A sua publicação ficou a cargo da Princípia Editora.
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