+M

O modelo de negócio do jornalismo ruiu. E agora?

Rafael Ascensão,

A crise de financiamento dos media vai estar em destaque no quinto Congresso dos Jornalistas. Mas o que se diz e defende no setor? Quais as soluções?

O mote do quinto Congresso dos Jornalistas, que arranca esta quinta-feira, é “Jornalismo, Sempre” – repescado da mensagem principal dos 50 anos da Revolução, “25 de abril sempre”. Mas, “dado o estado a que chegámos”, como diz Pedro Coelho, presidente da comissão organizadora, o financiamento é a questão que pauta todo o evento.

Chegamos todos à conclusão de uma forma muito rápida e evidente que o jornalismo não se está a conseguir sustentar. Se durante 200 anos foi possível que o jornalismo se aguentasse amparado pela publicidade, o modelo de negócio ruiu. É preciso encontrarmos outro modelo de negócio, e é esse caminho que temos de encontrar neste congresso“, afirma ao +M.

Segundo Pedro Coelho, a tarefa de encontrar uma solução não pode ser transferida. “Mesmo que isso dependa de outros, temos de ser nós a encontrar neste congresso as bases de reconstrução do jornalismo e do seu modelo de negócio. E devemos fazer essa discussão sem quaisquer tabus“, aponta.

Pedro Coelho não descarta soluções para o financiamento dos media, como a possibilidade da existência de um “financiamento público cego“, como um imposto ou financiamento para projetos de investigação — decididos por um conjunto de especialistas de reconhecido mérito junto da classe –, e incita a que se discuta como se pode “pôr o Estado a investir no jornalismo, sem a exigência de coisas em troca“.

O que se diz no setor sobre o problema de financiamento dos media?

Mafalda Anjos, até dezembro diretora da Visão, diz que o problema do financiamento dos media já tem duas décadas e que o “pecado original” foi começar-se a disponibilizar os conteúdos gratuitamente online. Embora todos órgãos de comunicação social sejam muito mais lidos atualmente, os benefícios desse aumento de “circulação” foram para os intermediários, ou seja, as grandes plataformas tecnológicas que vão oferecendo migalhas face ao volume do negócio e da dimensão do problema”, refere ao +M.

Neste sentido, “este é um tema que tem de ser tratado a um nível regional – neste caso ao nível europeu – para forçar estas tecnológicas a fazer a partilha das receitas quando os conteúdos são de base noticiosa e informativa“, defende.

Este é um tema que tem de ser tratado a um nível regional – neste caso ao nível europeu – para forçar estas tecnológicas a fazer a partilha das receitas quando os conteúdos são de base noticiosa e informativa.

Mafalda Anjos

Ex-diretora da Visão

Por outro lado, a indústria tentou corrigir o “pecado original” através das assinaturas e subscrições – algo que dá uma “base de sustentação muito boa”, mas que “só se consegue quando as pessoas confiam, acreditam e estão disponíveis para apoiar essas marcas”, defende, sendo que alguns títulos já conseguiram fazê-lo enquanto outros têm mais dificuldade.

E esta dificuldade deve-se ao facto de as pessoas “se terem habituado aos conteúdos gratuitos e de a indústria ainda não ter chegado a um ponto em se consiga fazer um ‘acordo de cavalheiros’, no sentido de não se canibalizarem uns aos outros“, diz a jornalista, criticando o facto de um meio ter um conteúdo exclusivo e de esta estar, minutos depois, nos outros meios. “Leva as pessoas a pensar que a subscrição não vale a pena”, acredita.

Na mesma linha da necessidade de partilha de receitas por parte das plataformas tecnológicas, Luís Santana, CEO da Medialivre, espera que 2024 possa trazer “alguma luz sobre a regulação do mercado publicitário, nomeadamente em termos europeus, introduzindo um maior equilíbrio entre os media, e as plataformas de social media e streaming, que sem estarem sujeitas às mesmas condicionantes e regulação que os diversos players nacionais, beneficiam de um ambiente mais favorável na captação do investimento publicitário“.

A afirmação foi feita no início do ano ao +M, lembrando o responsável que esses benefícios colocam em causa “os media nacionais que estão a fazer o seu caminho, no sentido de provarem os seus fatores diferenciadores para veiculo de mensagens publicitárias e de promoção das marcas junto dos consumidores“.

Já numa entrevista no final de dezembro ao +M sobre o futuro d’A Bola, Felipe Montesinos Gomes, o novo diretor-geral da empresa que foi comprada pelos suíços Ringier em julho e que passou por um processo de restruturação com o despedimento de 100 trabalhadores, defendia que parte da viabilização do negócio pode passar por uma relação diferente com a publicidade, por branded content e por se começar a perceber “quais são as necessidades das marcas“.

Nós temos que ter um briefing que perceba o propósito da marca, os objetivos da marca, o conceito da marca. E a partir daí vamos apresentar as propostas de valor de branded content. E é isso que o anunciante quer. Quer quase taylor made de campanha de comunicação feita para os seus objetivos“, defendeu.

Queremos criar relação com os nossos anunciantes, com as nossas marcas. Queremos trazer valor para a estratégia deles e, se forem bem-sucedidos, acreditamos que eles vão continuar e vão repetir.

Felipe Montesinos Gomes

Diretor-geral d'A Bola

“Queremos criar relação com os nossos anunciantes, com as nossas marcas. Queremos trazer valor para a estratégia deles e, se forem bem-sucedidos, acreditamos que eles vão continuar e vão repetir”, acrescentou. Para isso “tem que haver uma abertura diferente do nosso lado de editores (publicação), e temos que compreender muito bem quais é que são os posicionamentos das marcas e o que é que as marcas querem”, defendeu o responsável do desportivo.

Pedro Loureiro, fundador e CEO da Media Gate, a maior agência de meios portuguesa, também em entrevista ao +M em novembro, pareceu concordar com a base desta ideia, embora sublinhando que os media em Portugal sofrem particularmente por o mercado nacional ser “muito pequeno”, o que leva a um menor investimento publicitário. E este investimento “é fundamental porque é aquilo que garante a independência dos meios”.

O CEO da Media Gate destaca que, de forma a responderem aos anunciantes, os meios têm-se reinventado, como a rádio com os podcasts e a migração para o online, ou os jornais “com situações que há uns anos eram mal vistas, como os branded content –, mas reinventaram-se com várias fórmulas, como as conferências”.

Hoje há muitas formas de as marcas se relacionarem com os seus públicos e os meios foram quem, na realidade, tornou possível essa situação. Os meios têm uma grande capacidade de se adaptar ao mercado, a necessidade faz o engenho (…)”, afirmou.

Para os anunciantes, bem como para a toda a sociedade, é fundamental assegurar um jornalismo com condições para cumprir a função de 4º poder, com pluralidade e liberdade.

Ricardo Torres Assunção

secretário-geral da Associação Portuguesa de Anunciantes

Questionada pelo +M, a Associação Portuguesa de Anunciantes (APAN) diz acompanhar “com muita preocupação o momento que o jornalismo em Portugal está a atravessar“. No entanto, e referindo que os investimentos publicitários são a principal fonte de receita dos media, Ricardo Torres Assunção, secretário-geral da APAN diz que é verificável que “os investimentos publicitários feitos em media em Portugal estão a subir“.

Segundo os dados avançados por Ricardo Torres Assunção, em 2022 a subida foi de 7% e no último ano, até novembro, ia nos 11%. No entanto, “não ignoramos que estes investimentos evoluem de formas bastante díspares nos vários tipos de media, sendo que no total da imprensa escrita a evolução face a 2022 está nos 3%. Aqui é preciso distinguir o investimento em jornais, que registou uma quebra de 8%, do feito em revistas, com uma subida de 18%”.

Considerando a crise financiamento dos media “uma questão complexa que envolve uma multiplicidade de causas“, Ricardo Torres Assunção aponta o “nível de tiragens/audiências” e a “enorme dispersão de plataformas que competem com os jornais na atração da publicidade” como algumas destas causas, sendo que “a gestão financeira dos media a poder ser também uma delas“.

Quanto a encontrar soluções, o secretário-geral da APAN considera que essa é “uma discussão que importa fazer, sendo certo que as soluções serão tão complexas como a situação que se vive no momento, podendo ir de ajustes nos modelos de negócios às formas de financiamento“. “Certo é que, para os anunciantes, bem como para a toda a sociedade, é fundamental assegurar um jornalismo com condições para cumprir a função de 4º poder, com pluralidade e liberdade“, acrescenta.

Já Miguel Crespo, investigador do CIES (Centro de Investigação e Estudos de Sociologia) do ISCTE, numa conversa com o +M por ocasião da primeira greve da TSF, acredita que não há uma crise do jornalismo nem de audiências, mas antes um problema com o negócio do jornalismo e com a monetização do seu produto.

O investigador critica o facto de a estratégia de todos os meios em Portugal passar por reduzir custos. Ao invés disso, os meios de comunicação precisam de “procurar novas formas de monetizar o conteúdo” e de apostar em “modelos de jornalismo mais diferenciadores, no sentido de apostarem na qualidade em detrimento da quantidade“, até porque, internacionalmente, são esses modelos que têm tido sucesso comercial mesmo em países pequenos e pobres, como na América Latina, defendeu o investigador.

Financiamento (indireto) do Estado pode ser solução

Também por altura da primeira greve da TSF, Luís Simões, presidente da direção do Sindicato de Jornalistas, defendeu numa conversa com o +M que “chegou o momento em que o poder político tem que perceber que tem de haver uma intervenção no setor. Neste momento, em subvenções de que forma forem, em forma de vouchers ou de apoios diretos, acho que o Estado tem a obrigação de apoiar o jornalismo”, disse o também jornalista da Bola.

Chegou o momento em que o poder político tem que perceber que tem de haver uma intervenção no setor. Neste momento, em subvenções de que forma forem, em forma de vouchers ou de apoios direitos, acho que o Estado tem a obrigação de apoiar o jornalismo.

Luís Simões

Presidente da direção do Sindicato de Jornalistas

“Acho mesmo que chegámos a um momento em que temos que encarar como fundamental subvenções públicas no apoio ao jornalismo de qualidade e independente“, disse Luís Simões, acrescentando que acredita na passagem de decisão de apoio para cada cidadão, de forma a que estes possam contribuir para apoiar o meio de comunicação que entenderem.

Miguel Crespo também defende que é necessária “algum tipo de participação” por parte do Estado mas excluiu a subsidiação, tendo em conta que a mesma tem “muitos problemas”.

Segundo o investigador do CIES, a opinião da maior parte dos envolvidos no estudo desta questão de financiamento dos media – desde os jornalistas, às empresas e até “algumas partes do espetro político” – aponta no sentido de não se financiar diretamente os meios de comunicação mas antes os cidadãos, que depois poderiam escolher que jornalismo querem consumir e aplicar a verba que lhes é atribuída.

Mafalda Anjos também se mostra “completamente contra” qualquer solução que passe por financiar diretamente os media, até porque se “cria dependência, que não é saudável para a independência dos media“.

No entanto a ex-publisher da Trust in News não descarta soluções que passem por “apoios transversais a todos os meios”, que “permitam receitas via mercado e não via Estado”, como a atribuição aos cidadãos de cheques-assinatura, conceder às empresas uma majoração alta em sede de IRC pela publicidade investida nos media portugueses ou a oferta de pacotes gratuitos da Lusa aos órgãos de comunicação social.

A criação de um grupo de investigação especial da Polícia Judiciária para vigiar e punir a partilha ilegal de jornais e revistas em formato digital, a atribuição de incentivos fiscais (tanto para empresas como para pessoas individuais) que estimulem o mecenato e filantropia na área dos média, ou portes pagos para a imprensa escrita são outras das ideias propostas por Mafalda Anjos.

“Seria também relevante que fossem tomadas medidas de forma a garantir a sustentabilidade da logística de distribuição”.

Luís Santana

CEO da Medialivre

Quanto a possíveis intervenções por parte do Estado, Luís Santana defendeu que “seria também relevante que fossem tomadas medidas de forma a garantir a sustentabilidade da logística de distribuição“.

“A Vasp, única empresa a operar na distribuição de publicações, vê cada vez mais a distribuição a nível nacional ameaçada, situação que a breve prazo impedirá que muitas regiões do país deixem de receber jornais e revistas“, afirmou o CEO da Medialivre, que considera urgente “a adoção de medidas de fundo, muitas delas já apresentadas mas sem resposta das entidades competentes, para que todos os portugueses mantenham o acesso à informação a que têm direito“.

Congresso com cerca de 650 inscritos

A questão do financiamento é “claramente determinante nesta discussão”, diz Pedro Coelho, mas outras temáticas estão também em análise como o acesso à profissão, o jornalismo de proximidade – “onde a situação ainda é mais complexa” – ou as questões éticas e editoriais. Mas também as novas fronteiras do jornalismo vão estar em debate, onde se pretende discutir “de que forma podemos utilizar o potencial da tecnologia para salvaguardar, promover e melhorar o jornalismo, sem deixarmos que a tecnologia infete o jornalismo e perverta o seu quadro de valores“.

Outro tema “absolutamente transversal” para a organização é o tema da precariedade. No congresso, a abrir cada um dos painéis, vão ser transmitidos depoimentos de jornalistas que se encontram em situações precárias. Embora relacionado com a questão do financiamento, o tema da precariedade conta também ele com um painel autónomo.

“São desafios muito complexos, estamos a viver um momento muito difícil, e o que nós queremos é que este Congresso sirva para nos apresentar o início de um caminho. É isso que necessariamente precisamos que aconteça neste congresso”, refere o presidente da comissão organizadora do evento, defendendo que “tem de haver um antes e depois deste congresso“.

Sete anos após a sua última edição, a iniciativa volta assim a juntar jornalistas para discutir o jornalismo e o seu futuro entre 18 e 21 de janeiro, no cinema São Jorge, em Lisboa.

Segundo Pedro Coelho, o Congresso conta com cerca de 650 inscritos, praticamente o mesmo número registado em 2017. Tendo em conta que entre 2017 e 2021 o setor perdeu cerca de mil jornalistas – segundo números avançados pelo jornalista – foi alcançado desde logo o primeiro objetivo da organização, que passava por “sintonizar os jornalistas com a necessidade de virem ao congresso e discutirem“.

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