Alojamento Local: Lisboa arrisca litígios com alteração defendida pela IL em abril

Câmara de Lisboa discute novo regulamento do AL nesta quinta-feira. Versão final altera regra para preencher o rácio de licenças em zonas de contenção. Fica em aberto excesso de registos ou litigância

A proposta de regulamento para o Alojamento Local (AL), que o Executivo de Carlos Moedas leva a discussão na Câmara Municipal de Lisboa nesta quinta-feira introduz alterações ao documento enviado para consulta pública, e uma delas levanta uma questão de interpretação que pode resultar em litígio dos empresários contra a autarquia.

A questão está no artigo 8.º, o qual determina que um empresário de AL pode pedir a suspensão da sua licença para colocar a casa em arrendamento de longa duração e, finda a suspensão, regressar ao AL: “a suspensão da exploração de estabelecimento de alojamento local confere ao titular do registo a possibilidade de, finda a suspensão, obter o registo do estabelecimento de alojamento local em área de contenção para o referido imóvel, em termos análogos ao registo objeto de suspensão, sem prejuízo do disposto no número seguinte”.

A monitorização do número de alojamentos locais ativos no concelho é atualizada em permanência, com base nos dados do Registo Nacional de Alojamento Local, gerido pelo Turismo de Portugal

Câmara Municipal de Lisboa

A questão está neste “número seguinte” aqui referido. Entre a versão que foi a consulta pública no primeiro semestre e a que vai a discussão nesta quinta-feira há uma diferença óbvia. Diz a versão de março de 2025, que esteve em consulta pública: “A suspensão da exploração não prejudica o rácio previamente estabelecido”.

Já na versão deste mês de novembro, a formulação é que “a suspensão da exploração implica a atualização do rácio previamente estabelecido”.

O rácio em questão é a relação entre o número de casas em AL e o total dos fogos de habitação permanente em Lisboa. Tal como mostra a proposta de regulamento, já hoje há freguesias e bairros onde o rácio supera os tetos definidos. Quando tal acontece, a zona fica em contenção, ou seja, não se permitem mais licenças naquela zona.

A questão que pode levantar-se perante esta ambiguidade é: a suspensão de licenças permite que se abram novas licenças nessa zona, ou contam todas, ativas e suspensas? Se há uma quota total de dez, e cinco estão suspensas, podem conceder-se mais cinco ou considera-se que a quota está preenchida e não pode entrar mais qualquer AL? E se for permitida a entrada dessas cinco, e entretanto as primeiras cinco saírem da suspensão e forem reativadas, passam a haver 15 AL numa zona que tem uma quota de apenas 10?

Teoricamente, isto poderia levar, no limite, à duplicação do número de AL autorizados, uma vez que por cada suspensão (que poderia ser revertida de seguida) se permitiria a entrada de um novo registo.

À questão colocada pelo ECO/Local Online, da possibilidade de se permitir a duplicação de licenças numa zona que já atingiu o número máximo de licenças permitido pelo rácio, a autarquia nega que tal possa acontecer.

A questão que pode resultar no mal-entendido, e numa litigância contra a Câmara que a vereadora Alexandra Leitão não afasta, pode ser resumida assim: o titular de uma licença de AL numa zona em contenção pede a suspensão e migra para o arrendamento urbano; depois, com o recálculo do rácio, outro empresário obtém uma licença que substitui esta suspensa; contudo, considerando a liberdade dada pelo regulamento para se pedir o regresso da licença suspensa, naquela freguesia ou bairro de Lisboa passariam a somar-se o fogo de AL regressado após suspensão e também aquele que entrou para o seu lugar.

O potencial mal-entendido é negado pela Câmara ao ECO/Local Online: “essa interpretação não corresponde à realidade normativa” e “a suspensão de um único registo de AL não possibilita a emissão de uma nova licença nesse território”. Mas as diferenças de redação da proposta do regulamento do AL face ao inicialmente avançado continuam a deixar dúvidas e podem abrir espaço a disputas jurídicas.

O que se diz agora é que se atualiza o rácio. A partir do momento em que atualizo em baixa, ou há [no regulamento] a ressalva de que não poderia haver novos pedidos, ou a partir do momento em que não tenho o rácio preenchido, tenho de autorizar [novos registos]

Alexandra Leitão

Líder da vereação do Partido Socialista em Lisboa

Perante o ponto 4 do artigo 8.º na proposta de regulamento do AL que será discutida nesta quinta-feira na Câmara, e perante a alteração que produziu face ao texto da proposta sujeita a discussão pública no primeiro semestre, os empresários poderão ter outra interpretação. É aqui que se encaixa o alerta da socialista Alexandra Leitão, que, contactada pelo ECO/Local Online, assegura haver um perigo para a autarquia: litigância.

O atual número quatro diz o contrário do anterior número quatro”, enfatiza. “Não podem querer dizer a mesma coisa”. E, perante a referida ressalva existente no número 3 do artigo 8.º de “sem prejuízo do número seguinte”, a socialista considera que a alteração do sentido na formulação do número 4 (na proposta em consulta pública não havia atualização do rácio, mas agora já há) anula esta ressalva.

“O que se diz agora é que se atualiza o rácio. Só pode ser atualização em baixa”, ironiza. “A partir do momento em que atualizo em baixa, das duas uma: ou há [no regulamento] a ressalva de que não poderia haver novos pedidos, ou a partir do momento em que não tenho o rácio preenchido, tenho de autorizar” novos registos, salienta a vereadora.

Para o Executivo clarificar esta situação no novo regulamento, Alexandra Leitão alvitra uma de duas soluções: adicionar no regulamento a restrição ao regresso de quem suspendeu a licença porque quis explorar o arrendamento de longa duração, ou obrigar a que os que ocupam esse lugar no rácio tenham de sair quando o registo suspenso regressa. “Tem de assumir que na pendência quem suspendeu não pode reatar; ou, nos novos [registos], assumir aquilo que se chama em Direito a condição resolutiva, se quem suspendeu voltar“.

Questionado do porquê de ter sido feita a alteração ao ponto 4 do artigo 8.º, o Executivo não respondeu até à publicação deste artigo. Contudo, há uma nota relevante: no contributo que deu durante a discussão pública da proposta de regulamento (iniciada em março), a Iniciativa Liberal mostrou-se contra a não renovação dos rácios e defendeu uma solução muito semelhante à que veio agora a ser consagrada na proposta do Executivo camarário.

Na altura, o partido, que não tinha vereadores em Lisboa nem era ainda parte da coligação de governo autárquico, alegou, num documento a que o ECO/Local Online teve acesso, a impossibilidade de limpar os 40% de designadas “licença fantasma” em Lisboa (aquelas em que os titulares contam para o rácio, mas não têm o imóvel ativo no AL, por lhes estarem a dar outro uso, ou simplesmente terem decidido manter a casa fechada) caso não se fizesse o recálculo do rácio. Ou seja, defendendo que a quota não fosse consumida por licenças “fantasma” e sim por unidades em efetivo funcionamento em regime de AL.

Poderão ser casas usadas para habitação, mas que serão consideradas AL para efeitos de rácio, impedindo que outros alojamentos possam ser registados em freguesias e bairros que na prática não atinjam o rácio

Iniciativa Liberal

Texto no âmbito da consulta pública efetuada em abril de 2025

“Poderão ser casas usadas para habitação, mas que serão consideradas AL para efeitos de rácio, impedindo que outros alojamentos possam ser registados em freguesias e bairros que na prática não atinjam o rácio”, alertava o partido hoje liderado por Mariana Leitão e parte do Executivo de Carlos Moedas, mas que na altura destas notas ainda tinha à sua frente Rui Rocha e estava ausente da vereação na capital.

Questionada, a IL não respondeu, até à hora de publicação deste artigo, se a inclusão, na versão final da proposta de regulamento, das suas notas feitas em abril foi determinante para que os dois vereadores liberais votem, nesta quinta-feira, ao lado do PSD e CDS, seus parceiros de coligação na capital.

Outro dos pontos propostos pela IL, em abril, no seu contributo durante a discussão pública, foi a mão menos pesada sobre os rácios que determinam se é ou não permitida a emissão de licenças adicionais em determinada freguesia ou bairro. Enquanto que a proposta submetida a consulta pública apontava para uma redução das zonas de contenção relativa dos atuais 10% para entre 2,5% e 5%, e das zonas de contenção absoluta de 20% para 5%, a proposta que vai a votação duplica os valores apontados nessa versão inicial, dando maior espaço ao crescimento da atividade na cidade.

Ainda assim, os rácios agora enumerados estão abaixo do regulamento de 2019 deixado pelo Partido Socialista, como destaca o Executivo de Carlos Moedas. Na nova formulação, sujeita a discussão e votação nesta quinta-feira, coloca-se um bairro ou freguesia em contenção relativa quando o rácio de AL no número total de casas fique entre 5% e 10%. A partir de 10% fica como zona de contenção absoluta.

Para que se mexeu na regra da atualização do rácio?

Para o advogado João Pinheiro da Silva, sócio de imobiliário da CMS Portugal, aquilo que fica em aberto é a possibilidade de aqueles que detêm hoje uma licença e pedem a sua suspensão já não poderem regressar caso o rácio seja de novo esgotado. “Percebo o racional, mas vejo dificuldade práticas operacionais de como fazer, de forma razoável e eficaz, o controlo, quer da atualização dos rácios, quer o preenchimento dos rácios findas as suspensões”, diz ao ECO/Local Online.

Percebo o racional, mas vejo dificuldade práticas operacionais de como fazer, de forma razoável e eficaz, o controlo, quer da atualizaçao dos rácios, quer o preenchimento dos rácios findas as suspensões.

João Pinheiro da Silva

Advogado, sócio de imobiliário da CMS Portugal

Questionada sobre a periodicidade com que será efetuada a atualização dos rácios e qual o período mínimo da suspensão de licenças (apontando o regulamento um máximo de cinco anos), a Câmara de Lisboa refere ao ECO/Local Online que “a monitorização do número de alojamentos locais ativos no concelho é atualizada em permanência, com base nos dados do Registo Nacional de Alojamento Local, gerido pelo Turismo de Portugal”.

Não fica, contudo, claro se “em permanência” é ao minuto, dia, ou com que outro espaçamento temporal. Já sobre o período mínimo para o titular de uma licença a manter “adormecida”, a Câmara de Lisboa responde que “o regulamento atualmente em vigor não estabelece um período mínimo obrigatório de suspensão da licença”.

Relativamente ao novo regulamento, nenhuma referência, embora, mesmo numa leitura atenta da proposta, não se consiga encontrar referência ao período mínimo de suspensão. Ou seja, por absurdo, os atuais titulares pedem suspensão da licença para arrendar a casa e, no espaço de dias ou meses, podem regressar à atividade naquelas mesmas zonas em contenção. A questão é se ao fazerem isto, criam uma situação de potencial superação dos rácios, ou de litígio contra a autarquia, caso esta recuse devolver a licença suspensa.

Alexandra Leitão, puxando da sua experiência de jurista, realça a figura jurídica de “evolução da norma” para fazer a análise da nova formulação do ponto 4 do artigo 8.º. Este princípio mostra que o legislador “ao fazer diferente tem de ter querido dizer algo de diferente”. Leitão só encontra uma de duas explicações: “ineptidão política” do autor do regulamento, ou, em alternativa, “sabem o que escreveram diferente e sabem o que significa”.

Perante a garantia dada pelo Executivo de Carlos Moedas ao ECO/Local Online de que não haverá possibilidade de aumentar o número de licenças para lá do rácio, Alexandra Leitão pergunta “se era para manter tudo, então para que mexeram [no ponto 4]? Para que levantaram a dúvida?”

Possivelmente, um dos pontos que será alvo de discussão no curto prazo.

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