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Anunciantes contestam fim da publicidade na RTP: “A publicidade é do interesse público”, afirmam

Carla Borges Ferreira,

Os anunciantes não foram consultados sobre o fim da publicidade na RTP e contestam a medida. As privadas já estão saturadas e as consequências são imprevisíveis, dizem em entrevista.

A Associação Portuguesa de Anunciantes (APAN) não foi ouvida sobre o fim da publicidade na RTP1.Tendo em conta que representamos mais de 80% do investimento publicitário em Portugal, achamos estranho [o Governo] tomar uma decisão destas sem nos ouvir”, afirmam, em conjunto, Filipa Appleton e Ricardo Torres Assunção, secretário-geral da associação que conta com 83 empresas associadas e representa cerca de 300 marcas.

Os dois responsáveis defendem que em Portugal se vive uma realidade de saturação publicitária, em alguns momentos, nos três canais free to air. “O facto de nos tirarem um canal free to air vai potenciar ainda mais saturação nos outros dois. Depois, isto é a lógica básica do mercado a funcionar, menos oferta e a mesma procura, o que é que vai fazer? Provavelmente uma inflação dos valores”.

As consequências, dizem, são imprevisíveis. “Estamos a falar de negócios. Por cada euro que se invista, é pedido a um CMO [Chief marketing officer] para trazer retorno. O que pode levar o investimento que era feito nos órgãos de comunicação social portugueses a divergirem para outros meios que não estejam em Portugal, como as plataformas internacionais”, antecipam.

Como veem o fim da publicidade na RTP?

Ricardo Torres Assunção (RTA): Nós não vemos o fim da publicidade na RTP, vemos o anúncio da medida do fim da publicidade na RTP. Não concordamos e, acima de tudo, fomos surpreendidos por uma tomada de decisão pela entidade governadora. Dentro de um ecossistema em que há apenas a entidade governadora, os órgãos de comunicação social e quem produz e quem investe – quem faz a publicidade –, não fomos ouvidos. Não faço ideia se os órgãos de comunicação social foram.

Não foram ouvidos de todo?

RTA: Não fomos ouvidos de todo, nem pedida nenhuma consulta, nada. Tendo em conta que nós representamos mais de 80% do investimento publicitário em Portugal, achamos estranho tomarem uma decisão destas sem nos ouvir. É que não é um ecossistema demasiado complexo, está concentrado em três entidades… Estamos com muito receio das várias consequências que possam advir daí.

Que consequências antecipam? Quais são os vossos receios?

RTA: Vivemos em Portugal uma realidade de saturação publicitária, em alguns momentos nos três canais free to air. O facto de nos tirarem um canal free to air vai potenciar ainda mais saturação nos outros dois. Depois, isto é a lógica básica do mercado a funcionar, menos oferta e a mesma procura, o que é que vai fazer? Provavelmente uma inflação dos valores.

Ou seja, vai subir preço nos dois canais privados.

RTA: Tendo menos oferta porque sai um canal e a procura continua a mesma, a procura que existia naquele canal vai ter que passar para os outros dois. Se os outros já estão saturados nos momentos cruciais, é a lei da oferta e da procura.

Os momentos cruciais são em determinados momentos do ano e do dia?

RTA: Momentos do ano e do dia. No horário nobre e em momentos do ano, chegamos à altura do Natal e há spots a ficar de fora.

Filipa Appleton (FA): E não nos podemos esquecer que há determinados setores de atividade que têm restrição horária de comunicação. Para além da restrição horária vão ter menos um canal.

RTA: É menos um canal para comunicar. Tudo o que tenha a ver com álcool, com jogo só poderá comunicar a partir das dez e meia da noite. Vai haver aqui um amontoado de marcas, que vão ter que passar para dois canais, tendo a mesma oferta previsivelmente. E o mercado funciona de uma forma natural, haverá aqui uma inflação dos preços.

Havendo uma inflação dos preços, hoje em dia as marcas e os CMO já não investem em televisão porque acham que é giro. Investem em televisão, porque têm os objetivos de cobertura, em termos de custo de contacto é atrativo, e fazem as contas. Fazem as contas no retorno do investimento. Havendo inflação, o que vai acontecer? O retorno do investimento vai ficar menos atrativo. O que vai acontecer? Provavelmente dentro dos planos do mix media vão encontrar meios que consigam ter mais atratividade em termos dos seus investimentos.

Estamos a falar de negócios. Por cada euro que se invista, é pedido a um CMO para trazer retorno. O que pode levar o investimento que era feito nos órgãos de comunicação social portugueses a divagarem para outros meios que não estejam em Portugal, como as plataformas internacionais. Não faço ideia, mas é o risco que está em cima da mesa.

Havendo uma inflação, que vai acontecer? O retorno do investimento vai ficar menos atrativo. O que vai acontecer? Provavelmente dentro dos planos do mix media, vão encontrar meios que consigam ter mais atratividade em termos dos seus investimentos.

Ricardo Torres Assunção

É o que acham que vai acontecer?

FA: A questão é complexa e não vai ser uma medida, uma consequência. Uma medida poderá ter aqui várias consequências.

RTA: Terá múltiplas consequências. O que nos fez um pouco de confusão foi que ninguém nos abordou sobre o tema, deram a medida como a acontecer e ninguém teve em conta as consequências. Não explicaram se viram as consequências, os prós e os contras e perceberam, efetivamente, que isto é uma medida positiva.

Em vossa opinião, esta medida vai ser tomada em benefício dos privados? Ou porque é pretendido um novo conceito para a RTP, como justificou o ministro com a tutela? Segundo Pedro Duarte, a RTP será mais relevante se não andar atrás das audiências, o que é provocado pelos compromissos comerciais.

RTA: Também gostava de saber.

FA: Nós acreditamos que a publicidade é do interesse público. E tem interesse na sociedade. Vamos falar de publicidade tradicional. A Dove há 20 anos que fala de beleza real. Que fala de inclusão, que desmistifica e destrói o estereótipo de uma beleza de manequim de alta-costura. A Becel levantou o tema do colesterol, p Continente fala de literacia nutricional. A Wells acaba de lançar uma campanha que fala abertamente e sem tabus da menopausa. Até que ponto é que privar um canal desta comunicação, em prol do consumidor, é ter mais qualidade?

Temos dúvidas. Recordemos o Natal passado, em que a publicidade falava sobre temas de saúde mental, de solidão, são temas relevantes para a sociedade. A outra questão é que nós não sabemos, com esta medida, como é que ficam outros projetos, até de conteúdo, se calhar mais abrangentes, mais editoriais, como conferências. Como é que isto fica?

A Dove há 20 anos que fala de beleza real. Que fala de inclusão, que desmistifica e destrói o estereótipo de uma beleza de manequim de alta-costura. A Becel levantou o tema do colesterol, Continente fala de literacia nutricional. A Wells acaba de lançar uma campanha que fala abertamente e sem tabus da menopausa. Até que ponto é que privar um canal desta comunicação, em prol do consumidor, e ter mais qualidade?

Filipa Appleton

Que tenham a RTP1 como media partner.

RTA: As contrapartidas normalmente são dadas em espaço de media. A RTP1 vai ter budget para ser media partner ou vai desaparecer por completo?

FA: Outra questão, patrocínios como Volta a Portugal em Bicicleta? Como é que estas questões ficam? Portanto, ponto um, a publicidade é de interesse público. Até mesmo, e discutimos há bocadinho, o preço da banana e o saber que a banana está em promoção. Numa altura em que o consumidor faz contas à vida, é ou não é de interesse público? Até isso podemos discutir.

Mas já nem indo para esta questão, se calhar mais comercial imediata, questões como a inclusão social, como a literacia nutricional, questões como a menopausa e solidão, a beleza real, não é serviço público? E depois há as outras questões mais alargadas de conferências, patrocínios, encontros, eventos. Não sabemos como é que fica e preocupa-nos.

Têm algum encontro previsto com o Governo?

RTA: Foi comunicado na terça-feira, só tivemos acesso nesse dia ao plano, hoje é sexta. Passaram três dias e nós, antes de ter qualquer opinião pública, tivemos que consultar os nossos associados e amadurecer ideia. As pessoas ficam estupefactas em como é tomada uma decisão deste género sem termos sido consultados.

FA: Temos associados que não investem na RTP com publicidade e que estão preocupados com as consequências que possa trazer nos meios em que eles investem. Para nós é importante termos meios de comunicação social fortes, financeiramente saudáveis, com conteúdo de qualidade, com programação de qualidade, seja ela denominada de serviço público ou não.

Para nós, a saúde geral de todos os meios de comunicação, digitais, televisão, rádio, outdoor é extremamente importante e é o que nós defendemos. Quanto mais meios ao seu dispor os anunciantes têm, maior é a capacidade de decisão de como é que querem comunicar a sua marca e de chegar aos seus consumidores. Nós queremos consumidores informados, com capacidade de decisão, empoderados, e queremos meios de comunicação social fortes, financeiramente saudáveis, com conteúdos relevantes e que possam entregar com qualidade, aquilo que as marcas investem nos seus meios.

Apesar da fragmentação do consumo, televisão free to air ainda tem uma fatia muito significativa do investimento. Continua a ser relevante?

FA: Em Portugal é muito relevante. Faz cobertura nacional, faz abrangência rápida, chega a um target abrangente.

RTA: E é um meio de comunicação social que é credível, ao qual as marcas gostam de estar associadas. Felizmente temos meios de comunicação social em Portugal credíveis e transparentes e as marcas querem estar associados e querem estar lá presentes.

E os outros meios não são suficientes? Os canais de cabo, o digital, a rádio?

FA: Todos servem para complementar. Mas a questão está na complexidade do consumidor, na miríade de consumidores, no interesse do consumidor, até mesmo a forma de consumo que o mesmo consumidor tem ao longo de um dia e que é muito diferente. Há bocadinho falava com a diretora geral de uma marca e eu dizia assim “Eu vejo televisão free to air, notícias, de manhã, ao pequeno almoço”. E ela dizia “eu não, de manhã precisava de me levantar mais cedo, não quero fazer isso. Eu vejo à noite”.

E somos ‘a mesma pessoa’, com comportamentos diferentes. E há targets que veem mais televisão free to air, há targets que veem mais cabo, que consome mais digital. Temos é de ter a capacidade de ter um tecido e meios fortes, abrangentes, suficientes, para satisfazer esta panóplia de consumidores. Agora que a televisão em Portugal free to air é importante para criar cobertura nacional e abrangência, é.

Acham que a decisão pode ser de alguma forma ajustada?

RTA: Nós não achamos, nós esperamos. Esperamos pelo menos que nos consultem, que nos ouçam e que possa haver uma discussão produtiva de como podemos chegar aos objetivos que puseram em cima da mesa, fortalecer os meios de comunicação e afins, de outra forma que não a prejudicar as marcas e a publicidade em si.

Objetivamente vão ser prejudicados, se esta decisão avançar.

RTA: Pelo menos dois minutos por ano.

E as televisões privadas vão ser beneficiadas?

RTA: É uma questão de lei de mercado, não consigo fazer futurismo. Há várias possibilidades, poderão ser, poderão não ser, poderá o investimento ir para fora, poderá ficar cá. Não faço ideia.

FA: Poderá haver uma poupança de budget, só.

RTA: Poderá ser uma poupança direta de budget, cada marca fará o seu papel. Mas estamos todos a ser prejudicados.

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