“Código da Contratação Pública é um elefante no meio da sala em Portugal”

Joaquim Cunha, diretor executivo do Health Cluster Portugal, defende que a penalização da fraude com fundos "tem de doer", acreditando que "seria uma forma de termos melhores resultados".

O diretor executivo do Health Cluster Portugal, a organização co-líder, juntamente com a Prologica, da agenda mobilizadora Health from Portugal, considera que o Código da Contratação Pública é “um elefante no meio da sala em Portugal”. Temos de ter a coragem de, um dia destes, alterá-lo”, diz Joaquim Cunha, para quem a primeira medida deve ser aliviar os critérios administrativos e permitir uma maior discricionariedade por parte da entidade que preside os concursos.

No ECO dos Fundos, o podcast quinzenal do ECO sobre fundos europeus, Joaquim Cunha defende a lógica de pagamentos seguida no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), ou seja, mediante o cumprimento de metas e de marcos em detrimento do seguido nos fundos estruturais (contra fatura). Não acompanha as críticas do Tribunal de Contas Europeu que tem uma “visão muito ‘manga de alpaca’”. “Estou pouco incomodado se um determinado proponente ou promotor de um projeto alterou umas rubricas e uns valores, mas no fim chegou aos resultados, [face] àquele que tem tudo by the book, mas no fim tem uma coisa que o mercado não quer”, diz o responsável.

Joaquim Cunha considera que deve haver uma mudança de cultura e que a fraude com fundos europeus deveria ser penalizada de forma mais pesada. “Deveríamos ser implacáveis com quem prevarica, o crime não pode compensar.” “Tínhamos de fazer um esforço, porque ganharíamos. E estou convencidíssimo que nisto dos fundos seria uma forma de termos melhores resultados”, diz.

No PRR os pagamentos são feitos mediante o cumprimento de metas e marcos. Nos fundos estruturais tradicionais é mediante a apresentação de faturas. Qual a lógica melhor para a competitividade da economia?

Não tenho grandes dúvidas de que é a segunda hipótese, embora possa haver nuances. Também me parece muito ajustado os adiantamentos feitos no PRR porque permite a todas as entidades — empresas, universidades, neste caso hospitais — ter, logo no princípio, uma verba para fazer andar o projeto. Ajudou muito. Atrevo-me a dizer que a desculpa da tesouraria deixou de existir, sobretudo em projetos com muitas entidades, porque se um não cumpre está a estragar a vida aos demais.

Há uma pressão maior para que todos cumpram.

Exatamente. Funcionou bem.

Como responde à crítica de que dessa forma existe um maior dirigismo por parte de Bruxelas naquilo que deve ser financiado, retirando autonomia aos Estados, às regiões, para definir os projetos que possam ser diferenciadores para aquela região?

As agendas têm aqui uma situação particular porque são simultaneamente projetos de investigação & desenvolvimento e projetos de inovação. Nos projetos de investigação & desenvolvimento — isto pode não ser consensual — não vejo mal nenhum que haja uma centralização estratégica. Não via mesmo mal nenhum e atrevo-me a dizer que era o que a Europa precisava.

Seguir um esquema como o Programa Horizon, no qual todos os países concorrem em pé de igualdade e são os projetos com melhor qualidade que são efetivamente financiados?

Exatamente. E os temas são definidos centralmente. Depois temos de ver como é que os diferentes países contribuem para este ‘centralmente’. A última coisa que me apetecia era ter burocratas…

Nos projetos de investigação & desenvolvimento — isto pode não ser consensual — não vejo mal nenhum que haja uma centralização estratégica. Não via mesmo mal nenhum e atrevo-me a dizer que era o que a Europa precisava.

E sobretudo evitar que exista uma duplicação de apoio entre os diversos países.

Exatamente. Na parte do I&D parece-me bem que tenhamos uma abordagem ao nível europeu. Ao nível da inovação prefiro a realidade local, não só do país, mas da própria região. Portugal é um país relativamente pequeno, mas a realidade do Norte é diferente da realidade do Sul. Há especificidades. Sobretudo acho importante a clareza, a transparência. Não como o contrário à fraude, mas no sentido de conhecermos o que é que vai acontecer.

É por recear a fraude que o Tribunal de Contas Europeu é sempre bastante crítico ao modelo de financiamento via metas e marcos por considerar que não existe um controle tão efetivo sobre a despesa. Partilha desse receio?

Sem ser indelicado, diria que essa é uma visão muito ‘manga de alpaca’. Porque do ponto de vista administrativo, e para quem controla, não tenho dúvidas que é muito mais fácil ter lá as faturas. Está lá a fatura, está certo. O meu problema é: e aquela fatura é de quê? Era aquilo que precisava? Era aquele investimento que era necessário? Não temos volta a dar, que não seja, sobretudo, valorizarmos os resultados. E aí tem as metas, mas em última análise é mesmo os resultados. Quase que exageraria: estou pouco incomodado se um determinado proponente ou promotor de um projeto alterou umas rubricas e uns valores, mas no fim chegou aos resultados, [face] àquele que tem tudo by the book, mas no fim tem uma coisa que o mercado não quer, e no fundo deitámos fora aquela quantidade de dinheiro. Isto não é fácil.

O Conselho das Finanças Públicas estima que um quinto dos empréstimos do PRR não serão utilizados. Do seu ponto de vista, ainda bem porque não penaliza as contas públicas, ou é um desperdício?

Isso não é tanto na parte das agendas, mas é no todo do PRR. Temos um elefante no meio da sala em Portugal chamado Código da Contratação Pública. No meu modesto entendimento, temos de ter a coragem de um dia destes alterar este Código que, na sua essência e nos seus objetivos, faz sentido. O que se pretende é aumentar a transparência, é fazer com que a corrupção não exista, é fazer com que todos estejam em igualdade de circunstâncias. O que depois está a acontecer é que, no final do dia, nós contribuintes estamos a ser prejudicados. Porque o Código da Contratação Pública faz com que, a certa altura, adjudiquemos não a melhor solução, mas aquela que foi possível de acordo com as regras. Precisamos, pelo menos, de pensar sobre isto.

No final do dia, nós contribuintes, estamos a ser prejudicados, porque o Código da Contratação Pública faz com que, a certa altura, adjudiquemos não a melhor solução, mas aquela que foi possível de acordo com as regras. Precisamos, pelo menos, de pensar sobre isto.

Quais as alterações que faria, se houvesse consenso a nível partidário?

É muito técnico, mas sobretudo aliviava os critérios administrativos e permitia uma maior discricionariedade por parte da entidade que presida o concurso, que é responsável. Sobretudo a esse nível julgo que fazia sentido mudarmos.

Portugal devia apostar mais na fiscalização a posteriori e não tanto no momento da candidatura?

Absolutamente. Percebo que é mais fácil impor um caderno de encargos, um conjunto de regras da candidatura, e depois, até com o auxílio da inteligência artificial, ir por ali abaixo, e avaliar quem cumpre e quem não cumpre. Isto é mais fácil, do que confrontar ou avaliar os resultados da candidatura face ao que estava previsto.

Era criar regras mais dissuasoras para quem comete fraudes ou infrações?

Absolutamente. O revés de uma alteração destas é que deveríamos ser implacáveis com quem prevarica.

A ponto, por exemplo, de os impedir de voltar a concorrer a fundos europeus?

Coisas dessa ordem de grandeza. Em bom português, tinha de doer. O crime não podia compensar. Acho que tinha de ser mesmo por aí. É uma questão cultural. Nós, portugueses, não somos assim. Dificultamos, mas quando passou, ‘ok, agora vale tudo’. Tínhamos de fazer um esforço, porque ganharíamos. E estou convencidíssimo que nisto dos fundos seria uma forma de termos melhores resultados. E, sobretudo, de responsabilizarmos todos. Porque quando tem um problema com um projeto, sobretudo naqueles mais mediáticos, a certa altura lá se apanha ali um macaco qualquer, é este o inimigo número um. E não foi só ele, se é que ele é culpado. Termos uma avaliação mais forte após obrigava a um processo mais interventivo por parte das entidades avaliadoras, neste caso.

Uma postura mais dura para com aqueles que cometem fraudes com fundos europeus “seria uma forma de termos melhores resultados”, defende Joaquim Cunha, diretor executivo do Health Cluster Portugal, organização líder do consórcio da Agenda Mobilizadora para a Saúde (HfPT), em entrevista ao podcast “ECO dos Fundos”.Hugo Amaral/ECO

Regressando às agendas mobilizadoras, foi um modelo que veio para ficar? No PT2030 está a ser adotada a lógica das mini-agendas na inovação produtiva.

Acho que sim e ainda bem. Tenho dúvidas se essa adoção vai ser efetiva.

Porquê?

Julgo que vamos ter as mini-agendas, mas acho que devíamos ter, não grandes agendas, mas mais mini-agendas, isto é, esta mecânica…

Devia ter de ser ‘o’ modelo de funcionamento?

Não sei se é o único, mas que fosse… Quais são os ingredientes? Promover a cooperação entre entidades. Tem a ver com a valorização do conhecimento, o paradoxo europeu. Temos, de facto, de fazer aqui algo.

Para não perder o comboio face aos Estados Unidos?

Exatamente. Não adianta dizer que os culpados são os universitários, são as empresas. Não me interessa quem são os culpados. Fechemo-los numa casotinha e dizemos: só saem daí quando chegarem a acordo. Quando se trata de políticas públicas, de dinheiros públicos, podíamos orientá-los para objetivos desta natureza e julgo que aí estas agendas fazem sentido. Faz também sentido alguma dimensão. Tenho dúvidas dos pequenos projetinhos. Se calhar são interessantes, em algum contexto, mas é dinheiro deitado fora. Os efeitos não mexem ponteiro, para termos aqui alterações temos de ter…

Os fundos devem ser efetivamente estruturais e não paliativos.

Exatamente. Nem servir para política social.

Substituir despesa pública?

Exatamente, devem ser estruturais. Em vez de apoiar 50 projetos pequenitos que não vão ter efeito nenhum — se calhar para os beneficiários têm –, do ponto de vista estrutural preferia apoiar três. Isto tem riscos porque se desses três há um que falha são 33% e em 50 se falharem em dois ou três é uma percentagem negligenciável. Mas temos de ir por aí.

Em vez de apoiar 50 projetos pequenitos que não vão ter efeito nenhum — os efeitos não mexem ponteiro — do ponto de vista estrutural, preferia apoiar três.

A instabilidade internacional que vivemos vai impedir que os produtos e serviços produzidos pelas agendas mobilizadoras tenham o impacto devido?

Costumo dizer que a saúde é um setor desgraçado, porque é tudo complicadérrimo (sic), é tudo dificílimo, é tudo controlado. Mas tem algo de muito positivo: é imune. As crises vão passando e o mercado da saúde mantém-se. Mesmo as questões dos mercados de exportação. Às vezes é difícil entrar no mercado, mas uma vez lá estando não é fácil sair. No que toca à saúde, a agitação internacional não vai ter influência. Pelo contrário.

Nem mesmo se o setor farmacêutico for um dos alvos da deriva tarifária de Donald Trump?*

Acho que não vai poder ser. O Presidente Trump habituou-nos a esta agitação. Não faço parte dos que acham que o homem é maluquinho. Se calhar até é, mas não tenho dúvidas que aquelas coisas não são feitas por um arremedo ou por uma ideia qualquer. Há ali um pensamento por trás com o qual posso não estar de acordo, isso é outra coisa, mas eles sabem o que é que estão a fazer. E não os devemos subestimar. A globalização da indústria da saúde, nomeadamente daquela que está mais madura, a do medicamento, também é imune a isso. Nas dez maiores farmacêuticas, seis são americanas, mas têm operação distribuída por todo o mundo. Não é fácil o protecionismo elementar. Claro que o Presidente Trump está a procurar que os investimentos futuros da indústria farmacêutica pensem duas vezes, em vez de fazer na China, na Alemanha, melhor é fazer nos EUA. Mais uma vez isto vai ser atenuado como está a acontecer. Apareceu este tema do tarifário, a indústria farmacêutica foi uma das ameaçadas, mas acabou por não acontecer grande coisa. Sobretudo, por exemplo, na parte da indústria dos genéricos, acho que dificilmente… Em última análise, uma ação hostil em termos de tarifas vai prejudicar o cidadão americano. Isto vai ter de ser pesado.

* Este episódio foi gravado no dia anterior a Donald Trump ter anunciou a imposição, a partir de 1 de outubro, de “tarifas de 100% a qualquer produto farmacêutico de marca ou patenteado, a menos que uma empresa esteja a construir a sua fábrica farmacêutica nos Estados Unidos”. Bruxelas assume que estas tarifas não se aplicam à União Europeia porque o acordo com os Estados Unidos fixa as tarifas sobre produtos farmacêuticos em 15%.

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