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SaTG: “Clientes que não querem correr riscos são clientes perigosos para a sua própria marca”

Carla Borges Ferreira, Hugo Amaral,

Miguel Durão e João Ribeiro lançaram em 2019, no Preço Certo, a Stream and Tough Guy. Três anos depois é a Agência do Ano no Clube de Criativos, troféu a somar aos três leões que trouxeram de Cannes.

Miguel Durão e João Ribeiro fundaram há três anos a Stream and Tough Guy. O primeiro, copywriter, tem no curriculum mais de 10 anos de experiência em Paris e Nova Iorque. O segundo era CEO da Fuel, maior agência no mercado nacional.

Juntos fundaram uma agência de duas pessoas – em processo de seleção para uma terceira –, localizada em Lisboa, num espaço com 45 metros quadrados. Propositadamente pequeno, para impedir a tentação de crescimento. Não têm clientes de fee, não entram em pitches que não sejam remunerados e não escondem a visão crítica sobre alguns aspetos do mercado.

A não valorização da nossa indústria deve-se à posição em que nós nos pomos, a dizer que sim a tudo e numa subserviência ao cliente que não faz sentido. Temos que ser respeitados e temos que nos dar ao respeito”, dizem. Cliente que por desconhecimento ou com medo de arriscar pode ser “perigoso para a marca”. “Olho para trás e penso que as ideias de maior sucesso, de maior gozo e resultados, têm todas um ponto em comum: um cliente que se apaixona pela ideia”.

“Que o decisor esteja sempre na sala” é o pedido feito aos clientes, nos quais se inclui a Amorim Coork Flooring, a Azgard9, a Zippy, a Ding Dong ou a Federação Portuguesa de Futebol. Criatividade ao serviço do negócio, a relação agência/cliente e o papel das agências e das marcas são alguns dos pontos da conversa com esta que, na última quinta-feira, foi eleita Agência do Ano no Festival do Clube de Criativos. De Cannes, em Junho, trouxe um leão de ouro e dois de bronze, pelo CO2AT, trabalho feito em conjunto com a This is Pacifica.

Ganharam um ouro, dois bronzes e uma shortlist no Festival de Criatividade de Cannes. Agora foram a Agência de Ano no Festival do Clube de Criativos. Como é que olham para estes prémios? Sobretudo se pensarmos que é uma agência de duas pessoas, lançada há 3 anos.

João Ribeiro (JR): Sermos distinguidos com o Prémio de Agência do Ano no CCP deixa-nos bastante felizes. É um grande feito para uma agência independente e com apenas 3 anos de existência. É um reconhecimento que nos estimula a querermos fazer ainda mais e melhor para marcas que ambicionem o mesmo. Cannes vem legitimar, ou comprovar, este modelo de negócio ou de agência. É um trabalho real, com um briefing real, a gratificação de ser premiado é ainda maior.

Por outro lado, resulta de uma parceria com a This is Pacifica. É um trabalho totalmente colaborativo, que vem também justificar a visão de não temos que ser os melhores em tudo, mas podemos rodear-nos de quem é o melhor numa área especifica. Na nossa visão faz mais sentido em função do projeto montarmos a equipa, o projeto termina e voltamos a fazer equipas diferentes.

Nesse sentido foi muito gratificante, foi um projeto longo, todo feito durante a pandemia, feito por duas agências independentes de Portugal, para um cliente no Paquistão e que depois é reconhecido em Cannes, sem qualquer apoio de networks. É mesmo uma legitimação de que é possível, independentemente de se falar em lóbis, dificuldades ou da expressão do país, agências de Portugal independentes fazerem trabalho real com dimensão global, ter resultados e ser premiadas.

Miguel Durão (MD): Não gostamos de nos queixar, mas os fatores Portugal e agência independente…

São dificultadores?

MD: Claro que sim. E ser um cliente do Paquistão também não ajuda. Qualquer leão detido por uma agência independente na minha opinião vale o dobro, sabemos o peso das networks. Temos percebido ao longo destes três anos, mesmo quando tentamos que as nossas campanhas sejam faladas lá fora, que o fator Portugal e agência independente não ajuda. Podemos dizer que em três anos já ganhamos prémios nos três principais festivais do mundo: The One Show, D&AD e Cannes. Pouca gente no mundo o pode dizer e isso deixa-nos muito felizes. E fomos ainda Agência do Ano no CCP.

Como é o dia a seguir a uma semana como a de Cannes?

JR: Curiosamente não muda nada, o que é giro. Os prémios não são mesmo o drive ou a motivação. Como é lógico alimentam-nos o ego e sabe-nos bem ver o trabalho reconhecido pelos pares…

Não alimentam também a carteira de clientes?

JR: Não sei. Sendo objetivo, em Cannes surgiram duas oportunidades espontâneas, duas leads. Mais uma terceira agora, com um cliente com que já trabalhamos, mas o início de conversa foi: “Agora que ganharam Leões estão mais caros?”. E nós dissemos: “Claro que sim, obviamente”. Mas é uma consequência. O nosso mindset não é mesmo trabalhar para o prémio. É fazer diferente, disruptivo e original, mas sempre com um foco muito grande no negócio. No caso deste leão de ouro, acresce a dificuldade de ter sido para um cliente B2B. Esta ação, com esta peça de marketing direto que foi premiada em B2B e em Design, produziu resultados como se calhar como nenhum outro projeto em que estive envolvido. O coat foi enviado para um conjunto de potenciais clientes, o primeiro envio foi para 50, desses 50 houve sete leads. O projeto, no seu todo, teve um investimento inferior a 40 mil euros.

Sete cliente que nunca tinham tido qualquer contacto com a marca, e que o tiveram ao receber a peça, converteram num valor de negócio de dois milhões e meio de dólares. É a demonstração cabal da eficácia da criatividade. E isto dá-nos muito gozo.

Para enquadrar, estamos a falar de um casaco que produz oxigénio.

JR: Exatamente. Foram produzidas duas centenas de casacos, foi feito um vídeo case e vários conteúdos editoriais. Sete clientes que nunca tinham tido qualquer contacto com a marca, e que o tiveram ao receber a peça, converteram num valor de negócio de dois milhões e meio de dólares. É a demonstração cabal da eficácia da criatividade. E isto dá-nos muito gozo. A partir de Portugal, para o Paquistão, e depois chegarmos a todos estes players.

Já há uma lead que surge espontaneamente, a Lacoste nem sequer recebeu o coat inicialmente, viu o que estava a acontecer do ponto de vista mediático e entrou em contacto com a marca, quer incorporar o tecido que faz a fotossíntese em coleções próprias. É uma demonstração cabal da criatividade ao serviço do negócio. E isso para nós é o mais espetacular. Pensar só para os prémios é mais fácil, sabemos os temas que estão na moda, os sensíveis, aquilo que mexe com as pessoas. Converter para Cannes criatividade em função de prémios podia ser um exercício, há agências que até se mobilizam por isso.

MD: O que não está errado.

JR: Sim, não está errado. Mas não é o nosso posicionamento. Somos duas pessoas, costumamos dizer a brincar “já não é este mês que fechamos”. Como não temos clientes fixos, trabalhamos projeto a projeto.

Surgiram em maio de 2019.

JR: O lançamento foi em maio, no Preço Certo. Fizemos um projeto para a Zippy e tiramos três meses de férias. A agência é lançada em setembro.

O João era CEO da Fuel, agência integrada numa grande multinacional. O Miguel trabalhou nos últimos 10 anos em Paris e Nova Iorque. Como é que surge esta agência de duas pessoas, em Lisboa?

MD: Acho que perdemos um bocadinho o encanto por esse formato de agência grande e networks. Achamos que se perde muito quando se está numa estrutura brutal e se começa a perceber que a própria criatividade tem dificuldade em sair da agência. O cliente nem é o problema, o problema é a criatividade sair da agência, porque há muitos entraves, muita gente a dar opiniões, e deixei de acreditar.

Trabalhei em agências com 1.200 pessoas, eram cidades, e aquilo não era muito… Nunca fui um carreirista, também. Nunca quis subir e mudar o cargo para executive creative director e depois mais não sei o quê. Sempre tive a vontade de montar a minha própria agência. E então em Nova Iorque despedi-me, estive cinco meses a fazer freelance para lá, para Portugal, França, Dubai, e depois acabei por decidir voltar para Portugal, também porque muito do trabalho estava aqui e na Europa. E desafiei o João a abrirmos uma agência. Convidei-o para um almoço, ele foi-me buscar no seu jipe Volvo, que lhe foi dado pela Fuel, e eu entrei no carro e pensei que ele não ia querer. Para minha surpresa disse que sim.

Porquê?

JR: Pedi para pensar um bocadinho e disse que sim. Foi um bom timing. O meu dia-a-dia, embora fosse entusiasmante, era gestão pura. Ia fazer 40 anos, estava como CEO da Fuel, fui muito feliz, mas projetando a minha vida para os anos seguintes, senti que não tinha muita lógica para aquilo que é o drive que me motiva. Imaginando-me daqui a 5 anos, já não dava para ir muito mais longe. Era a agência número 1 em investimento MediaMonitor, há 5 anos a agência mais eficaz nos Prémios à Eficácia… Já estava tudo ganho por defeito, era uma estrutura bem montada, mas depois com aquelas deficiências que fazem pensar.

Quando cheguei a CEO, depois de estar na Fuel há 10 anos, recordo-me de ter recebido um email da network a dizer “João, bem-vindo ao grupo, está na agência que nos últimos anos foi a mais eficaz…”. Que distanciamento e que frieza, estou a ser recebido como se estivesse a chegar e estou cá há 10 anos. Pensei: “Tenho 40 anos, se é para ter as preocupações, vou tê-las com uma empresa minha e onde consigo tomar todas as decisões”. E isso dá de fato uma liberdade e uma forma de viver o trabalho completamente diferente.

MD: Acho que estávamos um bocadinho fartos de nos queixar. Da agência, dos clientes. Eu estava muito farto de mim próprio, isto vem dar-me zero oportunidades de me queixar. Se correr mal a culpa é minha, se correr bem a culpa é minha. E isso põe um bocadinho mais de pressão, mas dá muito gozo. Os clientes que vêm ter connosco sabem que vêm trabalhar connosco e não com uma equipa júnior a quem atiramos o briefing.

JR: Foi um processo com risco calculado. Não tivemos qualquer investidor, não temos dívida, foi tudo feito com capital próprio.

Quanto é que investiram?

JR: Ridículo, 10 mil euros. Mês a mês íamos fazendo os projetos. Mas esse risco mostra também a nossa forma de pensar. Acreditamos que se fizermos bom trabalho vai existir uma recompensa e é isso que tem estado a acontecer. Voltando à primeira pergunta, Cannes é o culminar deste processo. Os clientes tocam-nos à porta…

A não valorização da nossa indústria deve-se à posição em que nós nos pomos, a dizer que sim a tudo e numa subserviência ao cliente que não faz sentido. Temos que ser respeitados e temos que nos dar ao respeito.

Os clientes é que vos tocam à porta?

JR: Sim. Não fizemos um único contacto proativo. Quando lançamos o Preço Certo tínhamos dito que íamos fazer três meses de férias. Mas de repente já estavam leads a surgir e fizemos dois projetos de estratégia para pagar o custo da operação, mas tem sido sempre neste registo. Na primeira semana de setembro, quando abrimos, recebemos um email. Era um pitch. Nós não participamos a não ser que seja remunerado, porque achamos que o nosso tempo e o nosso know-how são demasiado valiosos para serem entregues dessa maneira e, por outro lado, não acreditamos que o modelo de pitch seja aquele que traz melhores resultados para o cliente. Perde-se muito tempo no processo e não tanto a discutir o essencial. Na Fuel já tinha participado em 1.082 concursos, ao longo de 10 anos.

MD: As agências têm portfolio que fala por elas. Com uma simples conversa, com uma chemistry meeting, é fácil entender-se se é ou não a agência certa.

JR: É raro o trabalho que vai a concurso ser o trabalho que sai, é um desperdício para toda a gente. Para o cliente que perde um tempo infinito com o processo de escolha de agência, é uma frustração para as quatro que não ganham, é um custo de horas que ali está que é perdido. Não acreditamos nesse modelo. E depois, é também uma questão de química. Felizmente há muitas agências e felizmente há muitos clientes.

Nós dizemos muitas vezes que perdemos muito dinheiro. E perdemos porque há um tipo de trabalho que não fazemos, porque não estamos talhados para isso. Quem ler esta entrevista vai sentir-se identificado. São muitas horas, é muita dedicação. O nosso trabalho não é muito visível, estamos aqui sentados a pensar, não andamos a cavar com uma picareta. Mas a leviandade com que muitas vezes se assiste a comentários, ou a própria disposição para a marcação de uma reunião e o chegar atrasado. A não valorização da nossa indústria deve-se à posição em que nós nos pomos, a dizer que sim a tudo e muitas vezes numa subserviência ao cliente que não faz sentido. Temos que ser respeitados e temos que nos dar ao respeito.

E são pouco respeitados?

JR: Somos. Este email resume tudo. Era uma quarta-feira e recebemos um email que dizia: “Boa tarde, vimos por este meio convidar a agência a participar no concurso que consiste no desenvolvimento de uma campanha, conceito criativo, plano de comunicação a três anos, recomendação de meios e estimativa de custos de produção e veiculação de espaço, para ser enviada na segunda-feira”.

Há três leituras que se podem fazer daqui. Uma é incompetência, vamos pôr essa de parte, porque quem somos nós para julgar a competência das pessoas. Mas depois vêm as outras mais graves. Uma é o concurso já estar atribuído, essa seria a mais grave, outra é a falta de noção do esforço que pomos nas propostas. A parte boa foi que, neste modelo, pudemos dar uma resposta que podia ser interpretada como arrogância ou falta de edução, mas é o contrário, somos nós a dar-nos ao respeito. Abri o email, carreguei no caps lock, escrevi ‘LOL’ e fiz send.

MD: Eles é que começaram a gozar connosco…

JR: Há qualquer coisa que não está a funcionar bem. Somos nós os dois, como felizmente temos o telefone a tocar e os emails a chegar, damo-nos ao luxo de escolher os projetos. Se estamos a fazer um projeto com um cliente, que ouviu, quis conhecer, confiou no trabalho, identificou-se com o trabalho da agência, quis trabalhar connosco e nos pagou, porque é que vou estar a correr um risco? A publicidade não devia ser um negócio de risco.

Mais, sendo um negócio de risco, isso é que faz com que muitas vezes se diga “tão caro, o fee é tão alto”. É. Porque as agências, por cada dez concursos em que participam, ganham um, dois ou três. Assim sendo, como é que se alimentam estas estruturas? Portanto, por um lado damo-nos ao respeito, por outro valorizamos os clientes que o fazem. E quando o fazem, têm de nós tudo o que querem. Isto não é uma visão romântica… Fazemos trabalho eficaz e efetivo e não fazemos mais porque às vezes não temos mesmo a capacidade de dizer que sim a tudo.

MD: É muito triste quando estás no meio da tua carreira, numa agência grande, aparentemente a cumprir o teu sonho, mas chegas à conclusão de que és infeliz a fazer o que adoras. Ser infeliz a fazer o que se adora acho que é pior do que ser infeliz a fazer o que não se gosta. O dinheiro é sempre engraçado e porreiro e a criatividade tem valor e deve ser remunerada, mas esse não é o nosso foco.

JR: Voltando ao início, o que é que esta premiação vem trazer, não sabemos bem. Mas, se de repente, o telefone começar a tocar muito mais, pode-se dar o caso de termos aqui um constrangimento na capacidade de dar resposta e teremos que ser mais seletivos ainda nos trabalhos, de forma a criar valor para todos.

Mais seletivos?

MD: Não queremos alargar se virmos que não é possível dar resposta com o mesmo tipo de qualidade que temos dado. Não temos de todo a ambição de ser uma agência grande.

JR: Muitas vezes encaminhamos trabalho para outras agências. E também trabalhamos com agências. O único compromisso que pretendemos que a agência assuma é que o trabalho que tem que ser assumidamente colaborativo. Ou seja, não somos uma ghost agency para ninguém. Há um trabalho que pela sua especificidade faz sentido ter-nos a bordo, se este trabalho vir a luz do dia é assinado pelas duas agências.

O João disse que a publicidade não devia ser um negócio de risco. E também falaram em feeling. A publicidade não é um negócio de risco? E juntando à equação os dados, a tecnologia, o Excel…

JR: Arriscar é diferente de risco. Uma coisa é arriscar do ponto de vista de termos uma proposta criativa e não sabermos bem o que vai acontecer do ponto de vista da reação das pessoas. Outra é o risco de nos porem a trabalhar. Ou seja, eu não tenho que correr o risco de provar seja o que for a um cliente, para depois ser compensado com uma remuneração pelo trabalho que fiz.

Fomos contactados para um pitch grande, uma coisa com uma dimensão muito grande, e o cliente dizia “pode ser life changing para a vossa agência, do ponto de vista do investimento que aqui há”. E nós dissemos “é exatamente por isso que não queremos, sobretudo no modelo de pitch”. Porquê? Vão contratar cinco agências para um pitch, ouvir as cinco e escolher uma. Mas não se consegue fazer undo àquilo que disse. E se for de facto transformador ou, pior, já aconteceu no passado, eu vou dizer o mesmo do ponto de vista estratégico que outra agência e não vou ganhar. E depois vou ver refletido o meu pensamento.

Do ponto de vista ético é delicado. Há consultoria gratuita que é feita. Até porque isto não é só fazer um boneco. Chegar lá e dizer “está aqui um conceito”. Há um trabalho profundo de interpretar o mercado, olhar para o negócio, ouvir o consumidor. Em que outras áreas é que se faz isto? É consultoria. O ponto é que há uma desvalorização sobre as profissões criativas. Por desconhecimento e alguma ignorância do que isto significa. Até chegar a este produto criativo há um trabalho muito sustentado, muito sério, muito profundo, para dizer “esta criatividade que aqui está não é porque somos uns gajos muito iluminados e chegamos a uma coisa muito gira”. Não, isto é a melhor resposta, no nosso entender, para um desafio que existe para a marca.

E infelizmente, e aqui sim uma crítica, o nosso mercado não está todo preparado para isso. E há pessoas, do lado das marcas, e do lado das agências, que não fazem este trabalho com a seriedade devida. Porque ou são malformadas do ponto de vista do percurso que fazem de educação escolar, ou têm pouca experiência, ou são mais gestores de carreira do que gestores da marca e, quando assim é, não querem correr riscos. E isso é um tipo de perfil que normalmente não se coaduna bem com o nosso.

MD: E mais, clientes que não querem correr riscos são clientes perigosos para a sua própria marca. Porque, hoje em dia, não arriscar é muito arriscado. Se continuarmos nesta mesmice de comunicação sem sal e sem pimenta como vemos quando ligamos a televisão, com anúncios que devem ter índices de recordação de 0,001%…

Dizemos com frequência “o que eu fazia com aquele budget“. Porque acreditamos mesmo que há muito dinheiro deitado ao lixo. Mas não é só o que eu fazia, é se me permitissem fazê-lo. É uma pena ver esse cuidado e essa tal gestão de carreira, quando é exatamente isso que faz com que as marcas não evoluam e com que a carreira da própria pessoa não evolua. Eu gosto de dizer que nós trabalhamos para que o cliente tenha sucesso. Ele ou ela, a pessoa.

A pessoa?

MD: A pessoa, a equipa.

JR: Mas o dramático é que dificilmente alguém enfia esta carapuça. Quem estiver a ouvir este discurso vai dizer “pois, pois é”. Mas não consegue enviar a carapuça, há sempre uma desculpa. Há uma tendência para achar que o consumidor é parvo, que não vai entender, que vai dizer mal. E o receio do que os outros vão pensar, é uma coisa muito pequenina.

Mas a responsabilidade é de quem? Do diretor de marketing, do administrador da empresa? Do board que não tem sensibilidade, pelo que não dá liberdade?

JR: Eu diria que é uma indústria pouco profissionalizada. Uma coisa é marketing, e nós nunca vamos perceber mais do negócio do cliente do que ele próprio. Mas há uma coisa sobre a qual percebemos mais, que é sobre comunicação e sobre publicidade. E trazemos a bordo desta nossa relação inputs de todos os outros mercados, que nos ajudam a ver com mais clarividência aquele desafio.

Por exemplo, Amorim, pavimentos de cortiça. Eu não vou perceber mais de pavimentos de cortiça do que a Amorim. Mas trazemos a bordo experiência de outros setores, até podemos dizer “o teu desafio até é parecido com este. Há esta tendência, mais esta e mais esta”.

É uma pena ver esse cuidado e essa tal gestão de carreira, quando é exatamente isso que faz com que as marcas não evoluam e com que a carreira da própria pessoa não evolua. Eu gosto de dizer que nós trabalhamos para que o cliente tenha sucesso. Ele ou ela, a pessoa.

Trazem a bordo sem fazer parte de uma network?

JR: Sim. Conseguimos falar com alguém na China, Japão, Escandinávia ou Brasil. Antes de fazermos o trabalho fomos ouvir arquitetos, ouvir decoradores de interiores, fizemos um trabalho de pesquisa sobre o que as pessoas valorizavam. O caso Amorim é muito interessante… Pavimentos de cortiça, que coisa menos sexy para se trabalhar. E numa empresa com a dimensão que tem e um espetro muito alargado de decisores. E nós fizemos um trabalho primeiro de validação estratégica, fomos ganhando a confiança do cliente – não conhecíamos, nunca tínhamos trabalhado juntos – e houve um grande respeito pelo nosso trabalho a todos os níveis, desde a administração, acionistas, direção de marketing.

MD: Há uma coisa que pedimos em todos os nossos projetos, que o decisor esteja sempre na sala. E que a nossa ideia não tenha que viajar na pirâmide interna, porque depois perde-se informação.

JR: No caso desta campanha estamos a falar de um investimento significativo. A estratégia foi validada, depois desenvolvemos uma proposta criativa que foi apresentada por videoconferência aos responsáveis de 17 mercados, cada um da sua nacionalidade – Rússia, Canadá, EUA, Itália. Eles foram confrontados com a ideia, todos eles a validaram e depois houve um trabalho de implementação. Neste caso da Amorim correram o risco de fazer um trabalho diferente e que abrisse horizontes.

Criaram com cortiça uma réplica da superfície de Marte e puseram um astronauta, Scott Kelly, a pisá-la.

JR: Desmontando o que ali está, é um astronauta a pisar um chão. Vamos ser frios, é um homem a pisar um chão, que é o que fazemos na nossa casa. E porque é que esta experiência é feita desta maneira? Porque o principal atributo na escolha de um pavimento – sim, a sustentabilidade é importante, as componentes técnicas são importantes –, mas no fim do dia, aquilo que mais motiva a pessoa a escolher é o design e queremos mostrar que com a Amorim existem 17 mil designs, este pode ser o 17.001. Aquele filme tem um dado incrível, tem 2m44s. 56% das pessoas que começaram a ver o filme, viram-no até ao fim.

Um marketer podia dizer “não, temos que ter um filme de 15 segundos, senão ninguém vê”. Estas verdades, que de repente se instituem, são um problema. Um dia alguém disse e depois ninguém questiona. E nós queremos questionar e dizer “não, não queremos fazer assim”. Mas quem testa fazer de maneira diferente, aí sim está a correr riscos. E esta nossa indústria precisa que se corram riscos, de alguém que diga, “sim, vou fazer um filme com 2m44s”, contrapondo com alguém que diga “mas ninguém vai ver isso”. Qual é o risco? Nós estamos a competir com toda a gente, não estamos a fazer publicidade. Estamos a chamar as pessoas para lhes captar a atenção.

MD: Isso é uma verdade que é preciso as marcas compreenderem hoje em dia, nunca tiveram tanta competição na vida como agora. A competição de uma marca de cervejas não são as outras cervejas, são as outras cervejas e o último tweet do presidente dos EUA, tudo isso está a competir pela atenção dos consumidores. Há uma responsabilidade muito maior em sermos criativos e em querermos ser vistos.

O ponto é que há uma desvalorização sobre as profissões criativas. Por desconhecimento e alguma ignorância do que isto significa. Esta criatividade que aqui está não é porque somos uns gajos muito iluminados e chegamos a uma coisa muito gira. Não, isto é a melhor resposta, no nosso entender, para um desafio que existe para a marca.

JR: Amorim é um ótimo exemplo. A campanha estava pronta e ia sair numa determinada semana. Dois dias antes, começa a guerra da Ucrânia. A nossa própria conversa foi “um astronauta? Americano? Vamos lançar isto agora?”. E o próprio cliente disse “Porque não? Vamos estar a competir com a atenção da guerra. Mas vamos, enquanto marca, passar uma ideia de alguma normalidade na vida das pessoas, para não estarmos a acentuar a ansiedade que as pessoas sentem”. Qual é o papel das marcas? É claro que têm que ter um propósito. Mas também têm que ver que propósito. De repente não podem ser todas as marcas salvadoras do mundo e com propósitos humanistas. Tem que haver obviamente na sua operação respeito por todo o circuito de produção, mas a marca tem que saber o seu lugar.

MD: É tão fácil perceber quando uma marca overstepped.

Qual deve ser o propósito das marcas?

JR: Mais importante do que propósito é o significado. Eu consumidor não estou à espera que as marcas venham advogar valores e dizerem-me como é que devo viver a minha vida. Nós não somos perfeitos, as pessoas não são perfeitas. Há uma pressão para o politicamente correto. E há marcas que não têm sequer fit para estar com este tipo de discurso. Porque a relação que tenho com elas é de baixo envolvimento. É como de repente esperarmos que uma pessoa que conhecemos hoje de repente amanhã já queira estar na nossa casa. Não, calma. Entras na minha casa quando já houver um grau de confiança ou se sentir que há um envolvimento maior. E esta pressão de agora todos sermos o supra sumo das sustentabilidade, o supra sumo da responsabilidade social, da tecnologia ou da inovação, a questão do metaverso, dos NTF,…

Agora é a corrida das marcas ao metaverso…

MD: Há mais marcas no metaverso do que pessoas, acho.

JR: Há tanto para fazer em outros canais, que é um desperdício. Não quero negar uma evidência, há uma indústria que nos quer convergir para uma vida paralela no digital. O gaming é uma indústria muito valiosa e sabemos que as novas gerações cada vez mais vivem dessa maneira, portanto o futuro vai ser uma integração cada vez maior do paralelo real com o paralelo. Nós falamos sobre virtual versus real, que é uma falácia. A partir do momento em que as pessoas passam tanto tempo no telemóvel, em jogos, em ecossistemas digitais, esta virtualidade passa a ser real.

Agora, daí a forçar uma presença das marcas neste ecossistemas, sem sentido. Uma coisa é a tecnologia, outra é a relevância. Muitas vezes a forma sobrepõe-se ao conteúdo e é um desperdício. É um desperdício porque o consumidor está-se nas tintas. A culpa, mais uma vez é nossa, da nossa indústria. Porque vemos que há ali valor, que há desconhecimento, e vamos tentar vender soluções. E as marcas com aquele medo, o fear of missing out, querem fazer já qualquer coisa.

Nesta correria de querer estar em todo o lado, qual é o papel das agências?

JR: É orientar. É dar tranquilidade, é tentar aproveitar os recursos que são sempre mínimos e canalizá-lo da forma mais eficiente para atingir um resultado. É perceber junto do cliente o que é estratégico, o que é apenas tático. E depois pôr a criatividade ao serviço. E aí sim, o objetivo da agência é dar o salto entre uma visão estratégica clara, concisa, que faça sentido para a organização, e dá-la a conhecer aos consumidores de uma forma que seja entusiasmante, relevante, memorável, com que as pessoas se identifiquem, que consiga ultrapassar o espetro da comunicação.

Um exemplo que tivemos, no sentido de perceber que de facto está a fazer ressonância, foi no Uncancel Collection, quando o José Rodrigues dos Santos, a seguir à entrevista do Obama, fala sobre o Uncancel Collection e o site estoira. Nunca pensámos que poderia haver tanta gente a aceder ao site ao mesmo tempo, a capacidade do servidor foi atingida.

Em relação ao metaverso, há uma realidade absoluta, The Central Land, que é talvez o maior universo dentro do metaverso, tem menos de 20 mil users diários no mundo inteiro. O que é que uma marca quer ir fazer para um sítio onde há apenas, do mundo inteiro, 20 mil users diários? O que é que uma marca portuguesa vai lá fazer?

O que mostra a força do “velho” Telejornal.

MD: Completamente, a televisão tem muita força. A história do “já ninguém vê televisão” é uma falácia completamente absurda. E, em relação ao metaverso, há uma realidade absoluta, Decentraland, que é talvez o maior universo dentro do metaverso, tem menos de 20 mil users diários no mundo inteiro. O que é que uma marca quer ir fazer para um sítio onde há apenas, no mundo inteiro, 20 mil users diários? O que é que uma marca portuguesa vai lá fazer?

JR: São coisas distintas, mas têm pontos de contacto. Sobre NFTs, Bill Gates é que dizia, e bem, que o NFT vive da teoria de que há de haver um estúpido que vai dar mais sobre aquilo do que pagaste. Posso parecer o meu avô a falar, mas uma coisa é um quadro, físico, palpável. Sim, pode haver réplicas, mas eu consigo, pelo menos à data, atribuir-lhe um valor. Os NFTs vão ser sempre relevantes, mas como moeda de entrada, como lado do funcional. Pagar milhões de euros por NFTs é uma estupidificação do ser humano. É querermos fabricar uma necessidade e uma urgência que não existe.

MD: Quando existirem milhões de users diários num metaverso, aí eu entendo que o NFT tenha valor. O quadro que eu tenho na minha casa, na casa que construi nesse mundo virtual, tenha valor porque há massa critica, há pessoas.

JR: Falávamos há pouco do propósito das marcas. Aí é que entra. Eu, enquanto marca, quero encaminhar as pessoas para uma vida digital? Faz sentido? Faz sentido termos estado dois anos enfiados em casa e agora querer enfiar as pessoas num ecossistema digital, porque isso na prática me dá jeito enquanto marketer? Porque de repente tenho ali um universo controlado, tenho dados, tenho estatísticas e consigo perceber o teu perfil? Ou faz sentido promover dinâmicas que do ponto de vista social possam ser mais relevantes, mais saudáveis? Sinto que há aqui uma tentação de nos por agarrados ao device.

Voltando aos prémios deste ano, o que dizem sobre a indústria?

JR: Para nós é uma validação de que aquilo que estamos a fazer está certo. Fomos todos juntos para Cannes, com a This is Pacifica e o cliente. Isto é muito importante, olho para trás e penso que as ideias de maior sucesso, de maior gozo e resultados, têm todas um ponto em comum: um cliente que se apaixona pela ideia. E consegue uma coisa extra, que antes não estava lá.

Do ponto de vista da indústria como um todo, este ano para Portugal foi incrível. Ainda assim, passo esta mensagem, de que Cannes é uma consequência. Temos que ter no mindset fazer trabalhos para briefings reais e não o inverso, que é ter uma ideia, temos ‘n’ na gaveta, e pensar “a quem é que vamos enfiar isto pela goela abaixo, para ganhar um leão”. Não dá gozo ganhar leões assim.

MD: Fazer acontecer uma ideia, porque dá gozo fazê-la acontecer, é válido. Mas é válido se a ideia for vendida, se houver compensação. Caso, contrário, mais uma vez, estamos a oferecer criatividade porque queremos ganhar um leão. Cannes não pode ser vaidade.

Em relação aos clientes… A nós não nos interessa minimamente qual é que é o briefing que nos chega. Se é pouco sexy, se não é sexy, se a marca dá para fazer coisas giras, se não dá, se já fez ou não no passado. A única coisa que nos interessa é o interlocutor do lado de lá. A paixão que tem e a vontade de facto que tem de fazer trabalho diferente, que chame a atenção de toda a gente. E isto tem sido uma constante com os clientes que temos trabalhado. São pessoas que confiam, acreditam que a criatividade pode ajudar o negócio e ajudá-los a eles próprios também. Ajudar as equipas de marketing a ser mais consideradas dentro das próprias organizações.

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