“Temos assistido a um falso diálogo e uma vontade inequívoca de avançar para eleições”

Mariana Vieira da Silva admite preocupação com as contas públicas e critica descida do IRC que "produz mais desigualdade em nome de uma fezada" que não está comprovado que trará crescimento.

Este “é o tempo de o Governo desenhar o seu Orçamento, tendo em conta os votos que tem e não os que gostaria de ter”; fazer “uma proposta que possa ser negociada, num trabalho que tem de ser sério e que não pode ser em reuniões de 20 minutos”; e “apresentá-lo àqueles com quem o quer negociar“. Este é o guião que Mariana Vieira da Silva, ex-ministra da Presidência, apresenta para as negociações do próximo Orçamento do Estado.

Temos mostrado a nossa disponibilidade para o diálogo“, garante ao podcast “ECO dos Fundos”, o novo podcast do ECO dedicado a fundos europeus. Mas critica o facto de o diálogo estar a ser “feito na praça pública” com “o Governo a dar recados na praça pública”.

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Para Mariana Vieira da Silva é inequívoco que o Governo de Luís Montenegro quer “avançar para eleições, que seria muito negativo para o país”. “Vemos todos os dias, desde artigos de ex-primeiros-ministros até à posição de vários ministros”, justifica. “Temos assistido a um falso diálogo e a uma vontade inequívoca e muito visível, numas pessoas, mais visível do que noutras, do PSD avançar para eleições que o país não deseja“, acrescenta.

Apesar de o PS, de mão dada com o Chega, ter aprovado medidas como uma descida adicional do IRS, a agora deputada socialista sublinha que a medida tinha “exatamente do mesmo valor que o Governo propôs”, ao contrário do que se passa com o IRS Jovem ou a descida do IRC – que “produz mais desigualdade em nome de uma fezada de algo que não está comprovado minimamente, que terá consequências no crescimento económico”. Garante que o PS continua comprometido com as contas certas, mas admite estar preocupada com o rumo das Finanças Públicas. “Não lhe escondo que me preocupa porque dá uma certa ideia de que o caminho de trabalho rigoroso com as instituições europeias deixou de ser prioritário e que é mais prioritário atacar o Governo anterior”, disse.

“Vamos ver se a soma de todas estas medidas aprovadas é compatível com o Orçamento. À partida, até agora sim, mas estamo-nos a esquecer dos inúmeros powerpoints com medidas que ainda não estão concretizadas, e que, sendo concretizadas, também têm muita despesa ou a diminuição de receita associada”, recorda.

Se o Orçamento de Estado não passar e o Governo de Luís Montenegro apresentar a demissão, isso terá consequências graves na execução do PRR?

Vou dizer exatamente o mesmo que disse enquanto era ministra. É evidente que há consequências. As duas vezes, por seis meses, que estivemos em gestão tiveram consequências, mas a democracia está acima dessas dimensões e o que o país tem é de se organizar com as diferentes forças políticas para ultrapassar os problemas que sempre traz a interrupção de um período governativo.

Nunca neguei as consequências, mas nunca responsabilizei ninguém, nem as duas vezes que a Assembleia foi dissolvida pelos atrasos. São coisas diferentes. Dizer que não há consequências não faz sentido nenhum. É evidente que se a Assembleia está vários meses sem trabalhar, há consequências no processo legislativo. É evidente que o próprio Governo está impedido de tomar determinadas decisões quando a assembleia é dissolvida. Mas não é por isso que os processos deixam de ser cumpridos, como está à vista.

Fizemos provavelmente, dois ou três meses mais tarde do que teríamos feito, o quinto pedido de pagamento, mas isso não se traduz num atraso irremediável. E, acima de tudo, do ponto de vista da seriedade política, aqueles que disseram que não teve consequências não podem agora dizer que desta vez teria, porque isso não é aceitável. O mínimo que exigimos é a coerência. Estou aqui a procurar ter as mesmas respostas que lhe dei quando, enquanto ministra, me colocou questões, e agora como deputada da oposição.

A democracia é assim. Às vezes há eleições, às vezes é necessário e não podemos pôr em oposição a execução de fundos comunitários e a democracia, porque aí a escolha é muito simples.

Porque é que, no entender do PS, a opção do Executivo de retirar a reforma do IRC e o IRS jovem, por exemplo, do pacote do Orçamento do Estado, é um passo atrás e não um passo em frente que permite ao PS a olhar para o documento com outros olhos e, provavelmente, abster-se na votação do mesmo?

O que é um Orçamento? É onde indicamos qual é a receita expectável e qual a despesa que pretendemos realizar. Se retiramos valores muito significativos da receita expectável em função de uma reforma do IRS jovem, que é injusta para o país, e de uma reforma do IRC, que é pouco útil e também ela injusta por só se dirigir a algumas empresas, estamos a alterar os termos do Orçamento.

A despesa que se pode prever no Orçamento não é a mesma, tendo em conta que retirei receita, por decisão política. Podemos muitas vezes fazer esse tipo de escolhas táticas, mas temos de perceber que não é por não estar dentro da Lei do Orçamento que não está no Orçamento. Quando retiro mais de mil milhões de euros de receita, estou a influenciar severamente o Orçamento. E se o faço de forma injusta…

Mas não é exatamente o que aconteceu quando PS e Chega se aliaram para aprovar a alteração ao IRS?

Não, porque estamos a falar exatamente do mesmo valor que o Governo propôs, ou seja, de uma distribuição diferente do mesmo valor. Neste momento, importa mais olharmos para o IRS Jovem, porque se no IRS temos uma diferente visão, na nossa perspetiva a visão do Partido Socialista é melhor porque garante melhor a progressividade do IRS, no IRS Jovem temos algo de muito diferente.

Temos uma transformação radical dos nossos mecanismos de redistribuição, o que faz com que duas pessoas com cinco anos de diferença, com exatamente o mesmo trabalho, tenham rendimentos muito diferentes, o que faz com que um aposentado que ganha 1.300 euros tenha um IRS completamente distinto de um jovem que ganhe 1.300 euros e que gera, no dia-a-dia de cada empresa, um tipo de desigualdades que é muito pouco positiva.

E depois gera uma mudança radical de vida entre os 35 e os 36 anos, com o rendimento disponível a cair radicalmente e com o que isso implicará. Às vezes vejo a nossa oposição ao IRS Jovem resumida como uma questão ideológica – a ideologia é muito importante –, mas não é só isso. É a criação de uma injustiça e uma alteração profunda da forma como o IRS funciona.

Não podemos pôr em oposição a execução de fundos comunitários e a democracia, porque aí a escolha é muito simples.

Mas não reconhece a bondade da tentativa de atrair os jovens, porque o país tem, de facto, um problema grave de êxodo dos jovens?

Reconheço a bondade e por isso o Governo também tinha um programa de IRS Jovem. Mas precisa de ser transitório, porque não é em função de uma idade concreta de 34 anos que estamos ou não num momento de inserção na vida profissional. E precisa de ser justo.

Podemos dar vários exemplos dos jogadores de futebol que passarão a pagar 15% em IRS, até aos jovens, sabemos que são poucos, mas de muito elevados rendimentos que também passarão a pagar 15% de IRS. Depois uma grande massa que são verdadeiramente a maior parte dos nossos jovens que não têm qualquer benefício. Quando perdemos mais de mil milhões de euros de receita em função de uma minoria de cidadãos a ter benefícios, temos de pensar se aquela é a escolha certa.

E quanto ao OE2025?

Temos mostrado a nossa disponibilidade para o diálogo e aquilo que vemos é um diálogo feito na praça pública e o Governo a dar recados na praça pública. Este é o momento de o Governo preparar o seu Orçamento e apresentá-lo àqueles com quem o quer negociar. E estou à vontade, porque durante muitos anos, quer durante o primeiro Governo de António Costa, onde havia uma geringonça, mas com grandes necessidades de negociação, quer durante o segundo Governo de António Costa, onde não havia uma maioria parlamentar com um acordo prévio e era preciso também negociar.

Este é o momento de o Governo fazer o seu trabalho e apresentar-se para uma negociação que deve ser franca. E aquilo que vemos todos os dias, desde artigos de ex-primeiros-ministros até à posição de vários ministros, é uma vontade de avançar para eleições que seria muito negativa para o país que é já visível e que todos estamos a assistir. Agora é o momento de trabalhar, de preparar uma proposta de Orçamento.

Teme o resultado do PS numas eleições legislativas antecipadas?

A questão não é temer ou não temer. O secretário-geral do Partido Socialista já foi muito claro quanto a isso. Mas também temos de perceber que se em cinco anos as pessoas têm de votar três vezes em eleições legislativas, não estamos a conseguir garantir uma estabilidade política que é desejável e desejada pelos portugueses.

A estabilidade política não deveria ser garantida entre os dois maiores partidos da oposição, PS e PSD?

A estabilidade política depende de quem está a governar. E foi sempre assim e nunca vi ninguém pedir ao PSD em 2020 que se disponibilizasse para aprovar o Orçamento. Agora é o tempo de o Governo desenhar o seu Orçamento, tendo em conta os votos que tem e não os que gostaria de ter no Parlamento.

E que faça uma proposta que possa ser negociada num trabalho, que tem de ser sério e que não pode ser em reuniões de 20 minutos para se dizer como é que as coisas vão ser e mais nada. É aquilo que temos assistido: a um falso diálogo e a uma vontade inequívoca e muito visível, numas pessoas, mais visível do que noutras, do PSD avançar para eleições que o país não deseja.

Mariana Vieira da Silva, ex-ministra da Presidência, em entrevista ao podcast do ECO "Eco dos Fundos" - 11JUL24
“Se em cinco anos as pessoas têm de votar três vezes em eleições legislativas, não estamos a conseguir garantir uma estabilidade política que é desejável e desejada pelos portugueses”, diz Mariana Vieira da Silva, ex-ministra da Presidência, em entrevista ao podcast “ECO dos Fundos”.Hugo Amaral/ECO

O PS acabará por ser penalizado pelas iniciativas que acabou por conseguir viabilizar através do voto do Chega?

Penalizado?

Eleitoralmente.

Na vida, temos, em todo o momento, quer estejamos no Governo, quer estejamos na oposição, de batalhar pela melhoria das condições de vida no nosso país. Esse é o fim último da política. Não é as minhas ideias, nem as ideias dos ministros que me sucederam. O Partido Socialista apresentou alguns projetos, muito limitados, todos eles muito quantificados, não são ideias gerais sobre quanto é que custa, em algumas áreas que consideramos fundamentais. E foram aprovados.

O que não podemos ter é um Governo que não tem uma maioria absoluta – tem, aliás, uma maioria relativa bastante frágil – a agir como se, sozinho, pudesse definir politicamente ou dizer até que o IRS agora não é uma competência mesmo da Assembleia da República, quando o é.

Não perdemos a nossa visão sobre a necessidade de ter contas públicas em ordem. Não perdemos a nossa responsabilidade e julgamos que isso vai ser reconhecido pelas pessoas. Foi isso mesmo que agora vimos nas Jornadas Parlamentares de Castelo Branco, sempre mantendo a seriedade e o equilíbrio entre o que cabe ao Parlamento fazer e aquelas que são as funções do Governo que, ao contrário do que possa parecer nos últimos meses, não são simplesmente dizer mal do passado.

Temas como Justiça, habitação, educação e a questão fiscal deveriam ser obrigatoriamente alvo de pactos de regime? Veja-se o caso da Irlanda, onde os partidos se entenderam e houve uma estabilidade de 20 anos na questão fiscal e com os ganhos de competitividade reconhecidos por todos. Porque é que Portugal, nomeadamente o PS e o PSD, não se conseguem entender nestas matérias?

Vou responder em dois momentos. Primeiro, indo diretamente à habitação. Portugal tem dificuldades sérias na área da habitação. O Governo tinha aprovado um conjunto de medidas, que se tentou passar como sendo extremistas, por exemplo, sobre alojamento local ou sobre habitação devoluta, quando são muito próximas daquelas que países – que nem são governadas por partidos da família europeia socialista – estão a tomar. Foram apelidadas de radicais medidas de gestão da habitação disponível, que já estavam a produzir resultados, que são públicos, relativamente ao número de habitações disponíveis para arrendamento.

E a primeira coisa que o Governo faz é reverter essas medidas. A estabilidade não é algo que caiba à oposição. Cabe, em primeiro lugar, ao Governo e depois à oposição. E não é algo que deva ser feito em torno de nada. Até porque no processo da habitação, o Governo anterior fez muitas cedências, depois do debate parlamentar. Tinha feito um esforço de aproximação às preocupações do PSD, mas a primeira coisa que foi feita foi reverter medidas que, ainda por cima, estavam a produzir resultados.

Agora é o tempo de o Governo desenhar o seu Orçamento, tendo em conta os votos que tem e não os que gostaria de ter. Que faça uma proposta que possa ser negociada num trabalho que tem de ser sério e que não pode ser em reuniões de 20 minutos para se dizer como é que as coisas vão ser e mais nada.

Relativamente às dimensões fiscais, o que deve orientar o nosso pensamento é, fundamentalmente, se estamos ou não a construir um país mais competitivo, com mais crescimento económico e que seja mais justo. E medidas do IRC que só vão beneficiar a grande distribuição, o setor financeiro e algumas grandes empresas, sem ter em conta se fazem ou não investimento, porque se fazem isso já tem consequências no IRC que pagam. Se sobem ou não os salários, porque se sobem isso já tem consequências, hoje, no IRC que pagam.

Se fazemos isso não estamos a poder construir um consenso alargado porque não estamos a trabalhar na equidade e na justiça. Estamos a trabalhar numa área que, no entender do Partido Socialista, produz mais desigualdade em nome ainda por cima de uma fezada de algo que não está comprovado minimamente, que terá consequências no crescimento económico.

Portugal vai regressar a um défice orçamental e desde logo a uma subida da dívida pública que o UTAO diz que foi conseguida com operações extraordinárias?

Sobre essas declarações da UTAO, remeto para aquilo que disse o ex-ministro das Finanças, Fernando Medina. Quando baixamos a dívida, melhoramos as condições do país porque reduzimos os juros que pagamos. E uma empresa pública, quando tem resultados positivos, deve utilizá-los para melhorar a sua capacidade de investimento, mas também para contribuir para outras empresas que não vão nunca gerar resultados positivos, como por exemplo, as dos transportes públicos.

Sobre as contas públicas, não lhe escondo que a forma como o Governo iniciou este caminho, a pôr em causa – e sendo desmentido pelos comissários europeus e pela Comissão Europeia – o ponto de partida que herdaram, me preocupa. Porque dá uma certa ideia de que o caminho de trabalho rigoroso com as instituições europeias deixou de ser prioritário e que é mais prioritário atacar o Governo anterior.

Vamos ver se a soma de todas estas medidas aprovadas é compatível com o Orçamento. À partida, até agora sim, mas estamo-nos a esquecer dos inúmeros powerpoints com medidas que ainda não estão concretizadas, que, sendo concretizadas, também têm muita despesa ou a diminuição de receita associada. Aquilo que procuraremos, enquanto maior partido da oposição, é fazer o escrutínio no Parlamento português e fazer o acompanhamento de um claro sucesso do nosso país e que precisa de ser continuado.

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