Autárquicas em Coimbra. Coligação de ex-ministra de Costa tenta abalroar ‘flotilha’ da direita

Numa coligação de sete partidos, José Manuel Silva tirou a Câmara a "dinossauro" socialista há quatro anos. Agora, numa "flotilha" ainda mais extensa, enfrenta uma ministra com a lição estudada.

“Quando um partido está na oposição e quer verdadeiramente romper com a situação e afirmar-se, utiliza as autárquicas como um instrumento importante de realização política”. O mantra partidário que poderia encaixar no atual momento do Partido Socialista estava, nestas palavras de Carlos Encarnação, direcionado ao seu próprio partido, o PSD de Pedro Passos Coelho. Naquele ano autárquico de 2017, a pior campanha de sempre dos social-democratas, Passos acertou na escolha para Coimbra, onde um ex-bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, formou uma frente de direita com sete partidos, do PSD ao Rir fundado pelo calceteiro Vitorino Silva, conhecido por “Tino de Rans”.

O vaticínio duro para o desempenho ao longo dos 308 concelhos – “o PSD arrisca-se a ter um resultado fraco” no país -, deixado nesta mesma entrevista ao jornal i em que o ex-autarca de Coimbra apontou a Passos um “discurso de cangalheiro” não fracassaria nessas autárquicas de 2017 no concelho que o próprio Encarnação retirou ao socialista Manuel Machado no ano negro socialista de 2001 – sequência de derrota eleitoral nas grandes câmaras do país e demissão do primeiro-ministro António Guterres.

O PSD perderia a autarquia para o PS de Manuel Machado – 26,6% vs. 35,5%, cinco contra três vereadores -, com uma terceira força a destacar-se, o movimento Somos Coimbra, com 16% e dois mandatos. A encabeçar este grupo de independentes, José Manuel Silva. O ex-militante “laranja” não concordara com a decisão de Passos Coelho em escolher o ex-deputado Nuno Freitas e avançou sem a chancela do partido. Em 2021, Rui Rio, presidente do PSD, invertia a decisão do antecessor na São Bento à Lapa, tirava Nuno Freitas de jogo e colocava em campo o ex-bastonário dos médicos. A jogada provou ser de mestre.

Aquele PSD conimbricense já não era o que Carlos Encarnação deixara em 2010, quando, após apenas um ano do seu terceiro mandato consecutivo, se demitiu. Fê-lo por discordar de uma medida do último pacote de austeridade aprovado pelo Governo de José Sócrates, meio ano antes da chegada da troika.

Machado e Encarnação dividiram 28 anos de liderança da autarquia, com o primeiro a integrar executivos socialistas desde os anos 1980 e o segundo a tornar-se vereador conimbricense desde 1979, em simultâneo com a presença na Assembleia da República. Há cerca de três meses, coincidiram de novo, mas na recusa em receber a medalha da cidade.

Quando Encarnação, eleito com maioria absoluta em 2001 e 2005, renunciou ao cargo, a presidência passou para João Paulo Barbosa de Melo, filho do histórico social-democrata António Barbosa de Melo e primeiro académico a chegar ao lugar mais alto na autarquia da “cidade dos estudantes”. O social-democrata deixava algumas obras polémicas, como o centro comercial Dolce Vita (hoje, Alma), obra que lhe valeu pedidos de perda de mandato e o percurso entre várias instâncias judiciais para responder a ações de cidadãos, mas também deixou um parque de ciência e tecnologia e o centro de congressos no Convento de São Francisco, que Encarnação designou de “obra deste mandato”. O mesmo que viria a abandonar meses após a consignação da obra.

No ato eleitoral seguinte, em 2013, ano da elevação de Coimbra a Património Mundial da UNESCO, Barbosa de Melo, numa coligação PSD/MPT/PPM enfrentou seis adversários distintos na sua tentativa de chegar a presidente eleito, entre os quais o seu ex-vereador Luís Providência, do CDS-PP. Os conimbricenses quebraram os 12 anos de maioria absoluta do PSD e “devolveram” o concelho ao socialista Manuel Machado, autarca de 1993 a 2001, quando saiu derrotado por Encarnação.

Regressado ao poder em 2013, Manuel Machado repetiu a vitória sem maioria em 2017, mas mais uma vez não conseguia fazer-se eleger a um terceiro mandato. O PS não só perdia o autarca a quem entregara a liderança da associação de municípios – foi Luísa Salgueiro, de Matosinhos, a encabeçar a entidade até agora –, como uma das poucas capitais de distrito que lhe restavam, em simultâneo com a conquista de Lisboa por Carlos Moedas.

José Manuel Silva, presidente da Câmara Municipal de Coimbra

Desta feita, o socialista, que liderava desde 2013 a Associação Nacional de Municípios Portugueses, saiu derrotado por uma “geringonça” de direita encabeçada por um novo interveniente da vida política. O independente José Manuel Silva voltou a unir PSD e CDS na sua cidade e juntou-lhes mais cinco pequenos partidos. Da soma das partes saiu uma maioria.

Machado abandonou o lugar de vereador, entregue ao ex-presidente da Associação Académica de Coimbra José Dias, numa bancada onde constava também um nome com pouca notoriedade no país, apesar de ter assento de deputada em São Bento, a socialista Rosa Cruz.

Esta foi a deputada que, no início de setembro, protagonizou com o presidente eleito pela coligação PSD/CDS/Nós Cidadãos/PPM/Aliança/Rir/Volt um inusitado momento de acareação em reunião de Câmara sobre declarações de José Manuel Silva a propósito de transportes públicos no concelho. Em pleno debate, apostaram o lugar de vereadora e presidente. “Se tiver proferido essa afirmação, como a senhora disse, eu peço imediatamente a demissão como presidente da Câmara. Se eu não tiver proferido essa afirmação, a senhora pede imediatamente a demissão como vereadora”. Ouvida a gravação das declarações do autarca, a socialista, derrotada na aposta, cumpria o acordado: “Não saio desta reunião, mas no final da tarde irá ter um comunicado a pedir a minha demissão como vereadora. A demissão será entregue no final da reunião”. Pouco depois, voltou atrás na decisão, com o PS local a acusar o presidente da Câmara de manipular as palavras.

Este é um dos episódios que marcam um estilo acutilante do ex-bastonário da Ordem dos Médicos, recandidato a 12 de outubro.

Noutra reunião dos últimos meses, quando confrontado por Rosa Cruz com uma consideração do Tribunal de Contas de falha da Câmara na defesa do erário público (num caso relativo à aquisição de um terreno ao banco Montepio para construção de habitação social, José Manuel Silva não poupou o TdC: “O Tribunal de Contas não é propriamente um profundo conhecedor dos problemas do mundo real, nem das obras. Desconhece o mundo real e faz comentários abusivos sobre matérias sobre as quais não tem conhecimentos para fazer”.

Na Câmara, explicava o autarca em maio na Local Summit, do ECO, decidiu renovar estruturas, mas a uma velocidade superior ao que a lentidão da administração pública suporia, e por isso já perdeu, como penalização, um mês de vencimento.

O líder da “geringonça” de direita denunciava então o “medo” existente na administração local. “As pessoas têm medo de decidir e inibem-se de decidir, e isso é um fator de paralisia do país e das autarquias”.

Cidade dos estudantes, luta de professores

Estudantes da Universidade de Coimbra participam na tradicional Serenata Monumental que assinala o início da Queima das Fitas de CoimbraPAULO NOVAIS/LUSA

Aquela que em tempos foi considerada a terceira cidade do país e que há quase 900 anos, com D. Afonso Henriques, chegou a ser capital de Portugal, é terra da mais antiga universidade portuguesa e uma das mais longevas de toda a Europa, vive da energia da juventude universitária e do dinamismo da Universidade de Coimbra, berço de uma das mais destacadas incubadoras de empresas do país, a do Instituto Pedro Nunes (pertencente à Universidade de Coimbra), onde nasceram empresas como a Critical Software e o unicórnio português Feedzai, cuja avaliação já supera dois mil milhões de dólares.

Em 2025, o ex-bastonário dos médicos e presidente da Câmara de Coimbra tem pela frente uma ex-ministra que, enquanto deputada eleita para São Bento em 2024, presidiu à Comissão Parlamentar de Saúde. Tal como o seu adversário, Ana Abrunhosa é independente e formou-se na Universidade de Coimbra, onde também deu aulas.

Ex-titular da pasta da Coesão Territorial no Governo de António Costa de 2019 a 2024 e, antes, presidente da CCDR do Centro entre 2014 e 2019, a economista propõe-se “Avançar Coimbra” com a coligação que une o PS, o Livre e o PAN. Um dos seus projetos é a criação de uma Área Metropolitana de Coimbra. Em maio, Abrunhosa teve de vir a público reiterar a sua manutenção como candidata, depois de notícias que davam conta de discórdia entre a ex-ministra e a concelhia do PS em Coimbra. Ao jornal As Beiras, assegurou: “A constituição das listas gera sempre alguma tensão – sobretudo quando se trata de uma coligação –, mas isso é absolutamente normal. Estou de corpo e alma nesta candidatura”.

Nesta coligação à esquerda não entram a CDU – partido representado na vereação, com um mandato, face a seis vereadores do Executivo “Juntos Somos Coimbra” e quatro socialistas -, que leva a votos Francisco Queirós, e o Bloco de Esquerda, que puxou do trunfo José Manuel Pureza.

Do lado da direita, a “flotilha” de partidos liderada por José Manuel Silva não leva a bordo o Chega, que vai a votos com Maria Lencastre Portugal, o ADN, de Sancho Antunes, e a Nova Direita de Tiago Martins.

A candidata do Partido Socialista (PS) à câmara municipal de Coimbra, Ana Abrunhosa, durante a intervenção na sessão de apresentação dos candidatos autárquicos pelo distrito de Coimbra, no pavilhão de Portugal, em Coimbra, 29 de março de 2025. PAULO NOVAIS/LUSAPAULO NOVAIS/LUSA

“Avançar Coimbra” não seria o mote de Abrunhosa caso fosse autarca no que se refere à inauguração do primeiro troço do metrobus feita há um mês pelo ministro Miguel Pinto Luz, num formato ainda circunscrito à cidade.

Apesar de o Governo assegurar que nada houve de eleitoralismo, asocialista preferia que se tivesse esperado pela conclusão da ligação à Lousã e Miranda do Corvo, esperada para o final deste ano. A decisão do Governo, concertada com a Câmara, foi eleitoralista, acusou. “Não somos anjinhos. Eu própria já estive no Governo e sei como estas coisas funcionam”.

“Metropneu”

Hoje conhecido por Metrobus do Mondego, a solução já era defendida há 11 anos pelo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, e depois passou a sê-lo por António Costa, líder do Governo de que Abrunhosa fez parte. O metrobus, como passou a ser designado na terminologia corrente para identificar o sistema Bus Rapid Transit (BRT), poderia ser sintetizado como o definiu Carlos Fiolhais, ensaísta e professor de física da Universidade de Coimbra: “o Metropneu”.

Uma “solução desengonçada, com pneus em vez de carris. Os passageiros vão ficar à espera dos autocarros na paragem dos comboios”, acusou, num artigo de opinião no jornal Público em 2017, após a visita de Pedro Marques, ministro do Governo de “geringonça” encabeçado por António Costa.

Três anos depois, ainda com Manuel Machado na autarquia, o sucessor na tutela das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, consignava as empreitadas para terminar o metrobus, ou, como afirmou há dias a sua aliada e camarada de partido Alexandra Leitão, colega de Abrunhosa no Conselho de Ministros e também candidata autárquica nas eleições de 12 de outubro, “um autocarro”.

Município que tinha ficado “queimado” com o processo de coincineração em Souselas, ao qual foi atribuída parte da responsabilidade pela derrota de Manuel Machado em 2001, Coimbra vive uma discussão e troca de acusações também com o metrobus.

Processo nascido oficialmente com um Decreto-Lei de 1994 assinado pelo primeiro-ministro Cavaco Silva e apoiado por Manuel Machado enquanto presidente da Câmara de Coimbra – um dos acionistas, juntamente com as também socialistas Miranda do Corvo e Lousã – o metrobus nunca ganhou rodas para sair do papel.

Em 2014, apenas sobravam memórias de carris e composições no Ramal da Lousã, a presidente da CCDR assegurava que Bruxelas só soubera do projeto do Metro Mondego pelos jornais. Essa responsável era nada mais que Ana Abrunhosa. Quatro anos antes, tinha sido iniciado o procedimento ordenado pelo Governo de José Sócrates para levantar os cerca de 40 km de carris do centenário Ramal da Lousã e reabilitar o corredor ferroviário para um metropolitano de superfície à imagem do que existe no Porto.

Só que nesse mesmo ano 2010, o PEC 3 (Plano de Estabilização e Crescimento) de Sócrates contemplava a suspensão da colocação de carris e catenária para esse metropolitano. Seis meses depois chegava a troika. Segundo o jornal Público, já estavam aplicados no terreno 140 milhões de euros.

A 6 de abril de 2011, já o social-democrata Carlos Encarnação renunciara ao cargo de presidente da Câmara de Coimbra, José Sócrates anunciava o pedido de assistência financeira para o país, após o chumbo do PEC 4. Meio ano antes, com o PEC 3, o metropolitano do Mondego perdera carris e catenárias. Três anos depois, o sucessor de Sócrates, Pedro Passos Coelho, dizia que a solução poderia ser um autocarro elétrico. Entretanto, já passaram 11 anos e só agora começou a circular o designado metrobus, sistema constituído por um autocarro articulado elétrico a circular num corredor exclusivo. EPA/JOSE SENA GOULAO/POOL

Esta é uma matéria em que Coimbra só tem andado para trás. No ano 1996, cumprindo uma decisão tomada em 1989 – encerrar o Ramal da Lousã –, surgia a sociedade do Sistema de Mobilidade do Mondego e começava um rol de sucessivas falhas na inauguração de um serviço digno de transporte pesado para as populações do distrito. A primeira data prometida para um serviço que surge desfigurado em 2025 ainda caía na década de 1990.

Outro dos horizontes de inauguração prometidos aos conimbricenses e restantes beirões servidos pela linha foi o Euro 2004, campeonato de futebol que deu origem a um estádio de futebol defendido por Manuel Machado e fortemente criticado por Carlos Encarnação, que a contragosto o acolheu.

Em 2014, Ana Abrunhosa, na qualidade de líder da CCDR Centro dizia que “não está nada decidido sobre a solução tecnológica”. Caso seja eleita a 12 de outubro, poderá regressar ao antigo Ramal da Lousã, agora como autarca.

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