Setúbal soma três presidentes no século XXI, todos do PCP, e todos em candidaturas com potencial de vitória. Dores Meira, que saiu do partido, tem o PSD a seu lado. A luta até já envolve a Justiça.
“Esta avenida tem o meu nome, mas podia ter o seu, porque foi a senhora que a fez, foi a senhora que deu uma nova dinâmica à cidade e que tem feito Setúbal uma cidade cada vez melhor”. A “senhora” é Maria das Dores Meira, o autor da frase o homenageado naquele dia 3 de outubro de 2017, José Mourinho, que passou a ter uma avenida com o seu nome na cidade natal. E, assegurou, só não tinha declarado apoio à candidatura da autarca da CDU ao terceiro mandato autárquico conquistado dois dias antes, porque “a goleada [já] era tão evidente”.
De facto, desde o ano em que a CDU conquistou a Câmara ao PS, 2001 – quando António Guterres, derrotado ao longo do país, achou dever demitir-se do cargo de primeiro-ministro, por, segundo o próprio, não querer deixar o país cair no pântano –, os comunistas governaram sempre em maioria, até a perderem em 2021. O vencedor nesse ano tenta um segundo mandato pelos comunistas. É um dos três presidentes de Setúbal neste século, todos do PCP e todos presentes em candidaturas distintas para conquista do concelho. Maria das Dores Meira é independente, mas apoiada por um PSD reforçado nas eleições de 2017.
O PS não se fica nesta luta entre antigos camaradas comunistas e tem ele próprio um trunfo saído do bastião comunista, Carlos de Sousa. O autarca que governou Palmela pela CDU entre 1994 e 2001 e se mudou para Setúbal para “roubar” a Câmara ao PS – com a histórica Odete Santos como presidente da Assembleia Municipal – é agora mandatário… do PS. Este partido, único que tem intervalado a liderança de Setúbal com o PCP, recandidata Fernando José, vereador na capital do Sado.
Sabendo-se que para governar uma Câmara basta um voto a mais que o segundo, o vencedor em Setúbal até pode ser definido com pouco acima dos 20%. Adicionalmente à CDU, PS e Dores Meira (apoiada pelo PSD), o Chega vem a jogo com uma vitória nas legislativas para o animar.
O joker desta eleição pode ser assim Dores Meira, que tanto tem potencial para a vitória, como para dividir eleitorado comunista e permitir ao PS a reconquista da autarquia. A política estrela em Setúbal iniciou a sua carreira política precisamente na cidade. Nascida e com a infância passada em Lisboa, residiu em Almada na juventude e ali casou, regressou a Lisboa e, em 1995, acabou por comprar uma segunda casa na capital do Sado, conforme a própria contou numa entrevista ao jornal i em julho de 1997.
Na mesma entrevista, Dores Meira afirmou não pensar prosseguir na política após um terceiro mandato em Setúbal, mas, ainda esse não tinha terminado e já aparecia a lançar-se como candidata da CDU a Almada, de onde saiu derrotada pelo PS de Inês de Medeiros.
Presidente acossado pela antecessora vê crescer a onda à sua direita

Excetuando um segundo lugar da AD de Sá Carneiro em 1979 e uma vitória social-democrata em coligação com o PS em 1985, dois meses depois de Cavaco Silva chegar ao poder, a capital do Sado foi mar adverso para a direita durante quase cinco décadas, até que nas legislativas de 18 de maio de 2025 o Chega foi o mais votado em Setúbal.
Mas no boletim das autárquicas, o PCP permanece hegemónico no século XXI.
Quando, há quatro anos, Dores Meira não se pôde mais candidatar, por atingir o limite de mandatos, o sucessor escolhido pelo PCP, André Martins, enaltecia “a visão integrada de desenvolvimento que a CDU leva[va] a cabo desde há mais de duas décadas”. O mesmo André Martins vem agora atirar a gestão daquela que foi presidente pelos comunistas nesse período para a secretária da Polícia Judiciária e da IGF.
Em comunicado, a candidata e ex-autarca contra-ataca e diz que o “relatório é um instrumento político pago com dinheiro público. Sem credibilidade, cheio de falhas técnicas e especulações, encomendado pelo executivo do Partido Comunista Português, a pedido do PS, para manchar esta candidatura. Estamos perante uma possível fraude em período eleitoral e um embuste aos setubalenses”.
As palavras elogiosas do candidato comunista André Martins em 2021 não deixavam antever a guerra aberta entre a autarquia (com PCP e PS unidos na acusação) e Dores Meira. Sobretudo quando aquele que viria a ser eleito e é hoje presidente, afirmou: “permitam também que saúde agora a Maria das Dores Meira, que acompanhei nesta viagem extraordinária que tem sido fazer de Setúbal e de todo o concelho um território mais qualificado”.
E se a governação de Dores Meira era um trunfo eleitoral por quem agora a ataca, a agora candidata veio há meses falar de um passado negro, ainda que nos últimos 20 anos só tenha havido quatro de governação CDU com outra cara que não a dela: “Sou candidata porque Setúbal não pode estar entregue ao populismo dos que governaram o município e deixaram Setúbal na bancarrota”, disse Dores Meira na apresentação da sua candidatura. Desde que saiu da Câmara, acusou, o município “está parado no tempo”.
A lista de candidatos inclui António Cachaço, a quem o Chega recorreu quando a candidata Lina Lopes se retirou da corrida eleitoral no último dia que a lei dava para apresentação de candidaturas, 18 de agosto, exatamente 55 dias antes do ato eleitoral. Outro nome da direita à direita de PSD e CDS é Cláudio Fonseca, guarda prisional eleito pelo Chega em 2021 e que agora aderiu ao ADN. A sua colega na Assembleia Municipal Mariana Crespo volta a concorrer pelo PAN. E há ainda Flávio Lança, economista de 49 anos que quer “Acelerar Setúbal” pela Iniciativa Liberal, Daniela Rodrigues, a bloquista de 32 anos que professa “Setúbal pelas pessoas” e André Dias, profissional de comunicação de 30 anos que corre pelo Livre.
PSD volta a surpreender com mais uma ex-comunista

Da parte do PSD, que em tempos teve uma ex-comunista candidata a uma Câmara da Área Metropolitana de Lisboa (Zita Seabra em Vila Franca de Xira), a surpresa foi a opção para Setúbal. A decisão tornou-se oficial em julho: apoiar a ex-autarca da CDU. Dores Meira reforça que é independente, mas não renega o apoio do PSD, que até teve o melhor resultado do século em 2021.
A menos de um mês das autárquicas, a decisão continua a agitar o partido, com as estruturas nacional e local a partilharem com o ECO/Local Online visões distintas sobre o processo que levou à indicação de um apoio polémico.
As primeiras informações sobre desavenças entre as estruturas local e nacional começaram a circular ainda em março. Ao ECO/Local Online, numa entrevista publicada este mês, o coordenador autárquico do PSD assegurou que o contacto com a ex-comunista se iniciou “há mais de um ano” e que se não há um candidato próprio do PSD é por incapacidade da estrutura local.
Não temos que encontrar apenas dentro de casa as soluções. Temos que encontrar as melhores soluções, sejam militantes, sejam independentes. E a Comissão política de Secção não teve esta capacidade de convocatória. Se não teve, nós tivemos que encontrar solução, e julgo que estamos a corresponder também àquilo que é a vontade da maioria dos setubalenses
“Se tivéssemos capacidade de convocatória para outras alternativas, e que percebêssemos que essas alternativas são capazes também de ser mobilizadoras, é óbvio que sim”, responde Pedro Alves quando questionado do porquê de não ter um candidato próprio. “Caberia também à Comissão Política de secção apresentar as alternativas melhores. O que aconteceu em Setúbal acontece em todos os outros sítios. Não temos que encontrar apenas dentro de casa as soluções. Temos que encontrar as melhores soluções, sejam militantes, sejam independentes. E a Comissão política de Secção não teve esta capacidade de convocatória. Se não teve, nós tivemos que encontrar solução, e julgo que estamos a corresponder também àquilo que é a vontade da maioria dos setubalenses”, defende.
As críticas claras de Pedro Alves levaram a Comissão Política de Secção de Setúbal do PSD a reagir, numa mensagem enviada ao ECO/Local Online na segunda-feira: “Vimos pelo presente desmentir categoricamente as declarações de Pedro Alves, coordenador nacional autárquico do PSD”, começa a estrutura liderada por Paulo Calado, concluindo que “rejeita que tentem transferir a responsabilidade de um apoio a Dores Meira, desta forma enganadora, apoio que não subscrevemos e ao qual nos opusemos, desde o início”.
Dores Meira, sobre quem o PSD de Setúbal assegura que “não tem assumido este apoio”, afirmou, em declarações à Lusa logo após ser anunciado o apoio do partido de Luís Montenegro, ver a chancela social-democrata “com muita satisfação”. “Isso significa o reconhecimento do meu trabalho, ou do nosso trabalho, do trabalho de mais de 700 pessoas que integram este grupo. Este apoio significa que há confiança neste grupo. E isso dá-nos uma grande satisfação. No entanto, quero lembrar que se trata de uma candidatura independente e que não vamos seguir a orientações de nenhum partido, seja do PSD, seja de quem for”.

Partido Comunista, onde o coletivo vale mais que o indivíduo
André Martins, chamado para candidato quando Dores Meira atingiu o limite de três mandatos, garantiu a manutenção de Setúbal em 2021, uma das 19 câmaras e duas capitais de distrito que os comunistas conseguiram segurar.
Contudo, há quatro anos, a maioria que vinha de Dores Meira caiu. “Tínhamos objetivos um pouco mais alargados, mas, naturalmente, que reconhecemos as dificuldades de uma eleição com tantas candidaturas e algumas sem termos referência da sua ligação ao território e às populações”, disse o vencedor, que viu fugir um quarto vereador para o PS e um segundo para os social-democratas, representados pelo ex-ministro Fernando Negrão, que na anterior candidatura, em 2005, tinha levado o PSD ao segundo lugar na votação, com três vereadores.
Desde 1997, último ano de eleição de Manuel Mata Cáceres, o socialista que tirou a Câmara ao PCP em 1985 numa coligação com o PSD (apesar do empate em vereadores, tiveram mais votos) e depois foi reeleito num PS a solo em 1989 e 1993, que não havia mais de um vereador “laranja” em Setúbal.
Recuando ainda mais, só em 1979, ano em que a APU (antecessora da CDU) tomou a Câmara ao PS, o PSD tinha eleito três vereadores em Setúbal, numas autárquicas disputadas 14 dias após a maioria absoluta conquistada nas legislativas pela AD de Francisco Sá Carneiro.
Já em 2021, PS e PSD conquistaram, cada, cerca de 2.500 votos mais do que em 2017, enquanto a CDU perdeu quase um terço da base eleitoral, mais de 7.000 votos. Considerando que o número total de votantes foi praticamente igual em 2017 e 2021, os mais de 2.000 votos em falta na fatia da CDU encontravam-se num novo ingrediente do bolo: o Chega, que somou 2.619 cruzes no boletim para a Câmara.

A vitória de 2021 teve um travo a derrota para André Martins, ex-vereador, ex-presidente da Assembleia Municipal e ex-vice-presidente de Dores Meira em Setúbal, e que foi também deputado do Partido Ecologista os Verdes no Parlamento entre 1989 e 1995.
A fragilidade da minoria na governação do mandato que agora termina valeu o chumbo pela oposição do orçamento proposto para 2024, momento de grande tensão na autarquia. Uma decisão que “ocorreu apenas para criar dificuldades à gestão”, acusou o autarca numa entrevista ao ECO/Local Online em janeiro.
“Os partidos da oposição, quando votam contra o orçamento, arranjam argumentos: dizem que o orçamento é muito elevado”, acusou então o autarca, que defendeu o orçamento considerado elevado com “o maior investimento de sempre em todos os mandatos desde o 25 de Abril”. E deixava o aviso: “não fico calado, vou falar com a população e atribuir a responsabilidade aos partidos da oposição”.
As pessoas são importantes num coletivo, mas fora desse coletivo valem pouco mais que nada.
Pela voz do líder, a CDU desvaloriza a potencial força eleitoral da detentora do cargo de presidente entre 2006 e 2017, onze dos 24 anos consecutivos em que os comunistas são Governo na capital do Sado. “As pessoas são importantes num coletivo, mas fora desse coletivo valem pouco mais que nada”, afirmou Paulo Raimundo.
A afirmação, proferida no final de julho, após o anúncio de candidatura independente feito por Dores Meira, encontra conforto nas declarações de há 25 anos do setubalense mais mediático do mundo, aquando da sua primeira passagem pelo Sport Lisboa e Benfica: “quero que os jogadores pensem que o coletivo se sobrepõe sempre ao individual. Quem quiser provar o contrário vai ter de o fazer sozinho”.
Dores Meira aceita o desafio do Zé Mário de Setúbal. Haverá na cidade uma segunda “special one”?
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Autárquicas em Setúbal: “Special one” da política ameaça CDU, dá esperança ao PS e divide o PSD
{{ noCommentsLabel }}