A minha insónia é gorda. E a tua?

  • Nuno Presa Cardoso
  • 25 Julho 2025

Acordo com olheiras e ideias. Algumas até boas. Outras são restos de conversa com a maléfica. Mas já nem me importo. Se ela me visita, é porque ainda há alguma coisa a resolver. Ainda há inquietação.

É, pois. Não no sentido literal, claro — não há como pesar um estado de espírito — mas no sentido emocional. É uma insónia que ocupa espaço. Faz tropeçar os meus pensamentos. Barafusta com o colchão. Com a almofada. Faz barulho. Vai buscar ideias que foram abandonadas muito longe, com esperança vã de não voltarem. Mas voltam com o raio da gorda.

Gosto de lhe chamar nomes. Ajuda-me. Não a adormecer, porque isso só acontece mais tarde, quando acontece. Mas faz-me sentir melhor. Não sei explicar porquê. Dizem que há mais de 88 tipos diferentes de insónia, e a mim tinha logo de me calhar a gorda. Já vivi muitos anos com a do briefing mal resolvido, a do diretor criativo que é bruto, ou com a existencial, que nos obriga a repensar toda a agência entre as 4 e as 5 da manhã.

Não dormir é uma arte. E, no mundo da publicidade, é quase um prémio de carreira. Gostava de saber se os monstros da publicidade também não dormem. Freud tinha insónias. Churchill também. Mas nenhum deles teve de escrever um copy para TikTok enquanto via um mail do cliente que afirma a pés juntos que o mundo está a arder.

Logo nesta indústria onde tudo é urgente e quase nada é importante.

A ciência explica a insónia com simplicidade. É a incapacidade de desligar. O cérebro entra em modo hiperativo, como um planner que conheci há muitos anos, depois de cinco cafés e uma TED Talk de um guru australiano. Resultado? Uma maratona de ideias inconclusivas, diálogos internos, monólogos com o teto e soluções geniais que só parecem geniais até chegar ao duche.

A minha insónia também é magra. Um palito. Aliás, dois, que impedem os meus olhos de se fecharem. Escanzelada e nada pontual. Chega a horas diferentes. Quando lhe apetece. E nunca chega de mansinho. Não. Acorda-me a cabeça toda. Vai lá ao fundo e chocalha-me até à glândula pituitária, que costuma estar tão sossegadinha.

Felizmente não é dramática. Não grita, não tem crises existenciais. Mas é pouco organizada. Baralha as minhas preocupações e mistura tudo [é tão desarrumada como eu). Relembra-me dos prazos, revê decisões enquanto liga o micro-ondas para requentar ideias de ontem. Depois vem para a minha cama mastigar possibilidades. Rói os cantos das decisões erradas que tomei. Às vezes tenta meter conversa. Finge-se mais interessante do que é. Fala de literatura, política, dos problemas do mundo. Mas no fundo, o que quer saber mesmo é porque é que eu estou a hesitar nas decisões que tenho de tomar. Porque continuo a pesar tantas vezes os prós e os contras. Logo ela, que nunca se deve ter pesado na vida.

Ninguém me avisou que, ao criar uma empresa, recebemos sempre uma insónia grátis. Seja pequena ou grande. Magra ou gorda. Tão fatal como os impostos. Enquanto isso, o mundo lá fora dorme. Inclusive aquelas agências concorrentes que finjo não acompanhar, mas que, misteriosamente, aparecem nos meus sonhos com um Grand Prix ao colo e um sorriso de quem ainda conseguiu fazer yoga às 18h.

Há quem trate a insónia com mindfulness. Chá de hortelã. Aplicações que reproduzem sons de cataratas islandesas. Eu, não. Eu fico acordado. Às voltas. Sinto-me um frango no churrasco de tantas voltas que dou. Enquanto ela me barra com o pincel das preocupações. Daquela dupla que recebeu uma proposta irrecusável para ir para a concorrência.

Só para a chatear, às vezes sou eu que trago temas novos para o diálogo. Só para ela perceber quem manda. Mas a bem nutrida não se deixa ficar — “Ai, agora queres pensar no clube? Então toma lá.” E traz mais uma pilha de pastas — A máquina de bolas avariou. Os sócios estão a reclamar com a altura da relva. Os javalis voltaram.

Voltemos à publicidade. Aliás, a insónia também é publicidade. Da má. Interrompe aquilo que estávamos a fazer. É intrusiva. É ordinária. São mesmo muitos defeitos mas, no entanto, sinto que estamos a criar uma relação duradoura.

Afeiçoei-me. Já dou por mim a acordar antes dela chegar só para a receber de braços e olhos abertos. E ali ficamos umas horas em amena cavaqueira. Como ela me conhece bem, vai-se embora com os primeiros raios de sol. Deixa-me dormir uma hora e meia, porque sabe que assim vou acordar mais bem-disposto.

E, nesses 90 minutos de sono concedido — esse bónus de fidelização que ela me oferece — sonho. Mas não com campos de relva verde imaculada ou praias desertas. Sonho com ideias aprovadas à primeira. Com o colar da Grande Ordem dos Cavaleiros Publicitários. Sonho com conceitos incríveis que aparecem, como que por magia, escritos no WhatsApp às 3h12 da madrugada.

Acordo com essa lembrança vaga de um mundo fantástico. Acordo com olheiras e ideias. Algumas até boas. Outras são só restos de conversa com a maléfica. Mas já nem me importo. Se ela me visita, é porque ainda há alguma coisa a resolver. Ainda há inquietação. Ainda há coisas a dizer.
A minha insónia é forte. Mas fiel. E, no fundo, talvez eu precise dela mais do que quero admitir.

Porque, enquanto ela existir, talvez signifique que ainda me importo.

  • Nuno Presa Cardoso
  • Partner e chief creative officer da Nossa

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