
Do produto ao propósito: a transformação no grande consumo
Propósito sem execução é retórica; execução sem propósito é commodity. O equilíbrio entre ambos sustentará o capital‑marca no futuro próximo.
Há pouco mais de uma década, o mercado do grande consumo em Portugal era bastante diferente. As marcas operavam num contexto mais previsível, as prateleiras eram dominadas por escolhas óbvias e o consumidor tinha menos voz. Hoje, muito mudou: a digitalização, as crises económicas, a pandemia e as novas exigências de sustentabilidade obrigaram marcas e fabricantes a repensar tudo. Desde o produto até à forma como falam com o público.
As marcas tiveram de acelerar a fundo. Passaram a viver em função dos dados, das redes sociais, da conveniência e da personalização. Tornaram-se mais centradas nas pessoas, mais rápidas a reagir, mais inovadoras na forma como criam valor. Já não basta ter um bom produto: é preciso ter propósito, transparência, eficiência e capacidade para antecipar tendências.
Pelo caminho, enfrentaram crises duras — a crise financeira, os anos da troika, a pandemia, a inflação recente — e ainda lidaram com as disrupções das cadeias de abastecimento, com consumidores desconfiados e com um retalho cada vez mais concentrado e exigente. Quem sobreviveu, aprendeu a ser mais ágil e mais resiliente.
E sim, as marcas mudaram na forma como são percebidas, mas mais por evolução do que por rutura. Houve uma transformação constante, puxada por fatores como o contexto económico, que tornou o consumidor mais sensível ao preço e às promoções; o digital, que deu ao consumidor uma voz ativa e exigente; a pressão para ser mais sustentável no produto, na embalagem, na comunicação e, claro, um retalho que se tornou mais exigente e concorrencial, passando a privilegiar sortidos mais curtos e as suas próprias marcas.
O resultado? As marcas que continuam a ter sucesso são aquelas que conseguiram manter-se relevantes, úteis e com algo a dizer. Que inovam, simplificam, comunicam bem e ganham confiança todos os dias.
Ao longo destes anos, também o papel das associações evoluiu e o trabalho associativo teve de se reinventar. No caso da Centromarca, os objetivos de base continuam inalterados: defender os interesses das marcas, promover um mercado mais justo, equilibrado e transparente. Mas a forma de o fazer mudou bastante.
Hoje, o foco está num advocacy assente em factos, dados e trabalho técnico rigoroso. Passou a ser essencial produzir informação credível, falar com diferentes públicos e agir de forma rápida e eficaz quando o contexto assim o exige. Sempre com um princípio de base: defender o setor, mas respeitar os papéis de cada interveniente na cadeia de valor.
O futuro promete ser ainda mais exigente. O futuro das marcas portuguesas e o futuro das marcas em Portugal.
As marcas portuguesas, sobretudo no setor agro‑alimentar, precisam de consolidar a sua presença externa, com foco em segmentos de qualidade e alto valor acrescentado e menos na lógica de volume. O Portugal‑de‑Marcas deve reforçar a Marca–Portugal, promovendo a imagem de produtor de excelência. No contexto interno, a prioridade é resistir à comoditização: comunicação clara, inovação relevante, reputação sólida e forte eficiência operacional devem diferenciar a marca de um produto genérico, independentemente de promoções e de preço.
O futuro passa também por relações mais equilibradas com o retalho, gerando valor para a marca, para o distribuidor e para o consumidor. Por cultivar parcerias com cadeias dispostas a co-criar e investir em storytelling conjunto, sem descurar a defesa firme em ambientes mais agressivos. Por amplificar contactos diretos: canais online próprios, lojas físicas piloto, presença estratégica em marketplaces e experiências pop up. Cada ponto de contacto alimenta dados, reforça o conhecimento do consumidor e protege a margem.
Num outro ângulo, a marca própria será cada vez mais uma ameaça, mas também um estímulo, sendo, simultaneamente concorrente temível e catalisador de evolução. Ameaça porque gera um terreno negocial inclinado, com espaço limitado, margens pressionadas, paciência curta do retalhista. Estímulo porque força as marcas a inovar rápido, acrescentar valor experiencial e manter relevância cultural. Equidade de regras quanto a espaço, custos e condições de entrada seria essencial para um confronto saudável. Até lá, a diferenciação tem de ser conquistada todos os dias.
Para além disso, a inteligência artificial, o comércio em tempo real, a aceleração das exigências ambientais e o foco cada vez maior no consumidor vão continuar a mexer com tudo.
Mas o risco maior reside no binómio relevância/espaço. Sem relevância, a marca perde legitimidade para ocupar o linear. É preciso, pois, reconquistar a pessoa para além do shopper, com comunicação multicanal criativa e assertiva, com inovação percebida como diferenciadora, com uma reputação sem falhas em sustentabilidade, ética e propósito, com a construção de narrativas multiculturais e transgeracionais.
Quem for relevante recebe espaço. Quem perde relevância abdica dele. Por isso, manter o valor e reforçar o propósito não é um exercício pontual. Exige conversação contínua com clientes, consumidores e sociedade. Propósito sem execução é retórica; execução sem propósito é commodity. O equilíbrio entre ambos sustentará o capital‑marca no futuro próximo.
Portugal tem marcas com talento, autenticidade e capacidade de inovação. O mundo espera‑as — mas só se falarem alto, claro e com provas dadas. Internacionalização qualificada, inteligência artificial ética, cooperação retalhista justa, diferenciação frente à marca própria e uma relevância construída na intersecção valor‑propósito serão as alavancas decisivas para ganhar o futuro.
As marcas que quiserem continuar relevantes vão ter de combinar preço justo, conveniência, inovação e compromisso com causas sociais e ambientais. E quem as representa terá de continuar a fazer o que tem feito até aqui: adaptar-se, ser firme, ser justo e, acima de tudo, manter o foco num mercado mais equilibrado para todos.
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