Há toda uma nova geração de criativos que não sabem ter ideias

  • Marcelo Lourenço
  • 26 Junho 2024

É verdade, Numeiro: ter ideias dá muito trabalho, é arriscado e quando a ideia é mesmo original, não há a menor garantia de que vá correr bem. E é isso que faz esta nossa profissão ser maravilhosa.

Precisamos falar sobre isso. E que melhor hora para fazê-lo do que logo após o Festival de Cannes, o momento em que o mundo celebra o poder da criatividade. Então lá vai: há toda uma nova geração de criativos que não sabem ter ideias. E pior: não estão minimamente preocupados com isso.

Mas eu estou. E fiquei ainda mais preocupado ao ouvir um episódio do “Extremamente Desagradável” com a Joana Marques. Era aquele em que a Joana falava sobre o Numeiro, um dos youtubers mais populares entre os jovens e que há alguns meses teve a maravilhosa ideia de promover um combate de boxe entre ele próprio e o pugilista búlgaro Simeonov. Com um pequeno problema: Numeiro é um boxeador amador, que treina há alguns meses, e Simeonov é um lutador profissional. Depois de semanas a anunciar a luta (e a cobrar dos seus seguidores ingressos virtuais para assistir ao combate) chegou o dia do confronto e para a surpresa de zero pessoas o Numeiro tomou uma valente carga de porrada, uma verdadeiro massacre que acabou em vinte minutos.

Fico feliz que o jovem Numeiro esteja bem, mas o que me preocupa não é a sua saúde mas a qualidade das suas ideias. Ou a falta delas.

No “Extremamente Desagradável” em que a Joana fala sobre o caso e mostra-nos trechos de uma outra entrevista do jovem influenciador que admite com uma candura impressionante, que copia mesmo as ideias dos outros. Ou nas palavras do Numeiro: “eu não perco tempo nenhum, prefiro pegar uma ideia que já está comprovada lá fora”. Diante disso, o entrevistador pergunta algo chocado: “Mas nunca te passou pela cabeça inventar aqui uma coisa que ninguém nunca fez?”. A resposta do Numeiro é um resumo de tudo o que está errado atualmente na indústria criativa: “Já não consegues inventar nada, qualquer ideia que até tu achas que foi tua provavelmente já foi feita”. Só faltou completar com um “eu é que não sou parvo”.

É verdade, Numeiro: ter ideias dá muito trabalho, é arriscado e quando a ideia é mesmo original, não há a menor garantia de que aquilo vá correr bem. E é isso que faz esta nossa profissão ser maravilhosa.

Como o Numério há dezenas, centenas de criativos e criadores de conteúdo que não sabem que criar não é copiar e o fazem sem o menor medo de ser feliz. A minha geração quando confrontada com a frase “isso já foi feito”, abandonava tudo e começava de novo. Alguns até seguiam com a ideia mesmo assim, mas a rezar para não serem apanhados. Mas toda a gente sabia que isso era errado, que o negócio da criatividade é pensar coisas originais, coisas que nunca foram feitas antes.

Isso era antigamente: vejo cada vez mais jovens criativos que só procuram as “fórmulas” testadas lá fora que podem ser adaptadas ao nosso mercado. Cheguei a trabalhar com um criativo digital que, quando ouvia “mas essa ideia já existe”, dizia com o ar mais convicto do mundo: “mas isso nunca foi feito cá”. E por mais que eu explicasse, o sujeito parecia não perceber qual era o seu pecado.

Isso me deixa muito triste. Não por mim, mas por essa nova geração de criativos, que cresceu a falar de data, de tecnologia, das boas práticas do digital, mas nunca conheceram o fogo interior de chegar a um conceito bizarro e pensar “isso é genial ou uma grande porcaria?” e perguntar-se “como é que ninguém nunca pensou nisso?”. Quando isso acontece, se a campanha vai ser aprovada ou não, realmente não importa. A ideia original que saiu diretamente da sua cabeça é algo tão poderoso, tão satisfatório que nem precisa ser apreciada pelos outros ou sequer aprovada pelo cliente. O que também é outro ponto fora da curva das ideias originais – elas costumam contagiar toda a gente, clientes, parceiros de toda a espécie, a media e as pessoas em geral.

E depois de feitas parecem tão simples, tão fáceis e tão óbvias que toda a gente pensa: ah, isso eu também faria.

No caso do “criador” de conteúdos Numeiro, o rapaz não só pensa como o faz – e copia como se isso o fizesse muito mais esperto do que toda a gente.

Esta é a raiz da minha preocupação: para remixar ideias que já foram feitas está aí a Inteligência artificial que faz isso, melhor, mais rápido e muito mais barato do que qualquer pessoa.

O que vai deixar sem emprego todos os Numeiros da vida.

  • Marcelo Lourenço
  • Co-fundador da Coming Soon Lisboa

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