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  • José Pedro Marques da Silva
  • 27 Março 2025

Chegou a hora de derrubar os muros entre a torre de marfim do marketing e as trincheiras das vendas. Quanto tempo mais podemos permitir que esta guerra interna sabote as próprias marcas.

Todas as manhãs, enquanto o café desperta os sentidos de uns e apenas marca o início de mais um dia para outros tantos, uma silenciosa tensão infiltra-se nos corredores empresariais — um abismo invisível entre os sonhadores do marketing e os pragmáticos das vendas. Esta desarmonia, longe de ser novidade, assume contornos cada vez mais nítidos na era digital. Enquanto os profissionais de marketing tecem narrativas repletas de emoção, cores e promessas grandiosas, os colegas comerciais pedem uma aplicação prática para lá do que muitas vezes consideram ser meras abstrações e desligadas da realidade crua dos números e objetivos.

Os marketers, esses arquitetos de estratégias corporativas, vivem num mundo onde o valor da marca é sagrado e a visão de longo prazo é a sua bússola. Criam narrativas elaboradas, desenham jornadas de consumidor sofisticadas e comunicam em termos de “brand equity” e “engagement“. No entanto, frequentemente tropeçam na sua própria eloquência, criando campanhas que, embora deslumbrantes no PowerPoint, podem falhar em fornecer ferramentas práticas para fechar negócios. Pior ainda, confundem comunicação com estratégia de marketing, focando-se excessivamente na execução criativa enquanto negligenciam a espinha dorsal analítica que deveria orientar as suas decisões.

Por outro lado, as equipas comerciais, na linha da frente das receitas, destacam-se na compreensão das necessidades dos clientes e no fecho de negócios. Contudo, os seus pontos cegos são igualmente relevantes.

Descartam frequentemente os esforços de construção de marca como “conversa fiada”, falhando em reconhecer como marcas fortes são, muitas das vezes, a razão de escolhas aparentemente irracionais, que respondem a necessidades e que, per si, têm a força na orientação da jornada de compra. O seu foco implacável em resultados imediatos e a constante busca por ferramentas de negociação de curto prazo, pode minar pode minar a capacidade de influência e erodir o valor da marca.

A diferença de linguagem vai além da mera divergência de métricas. Trata-se, na essência, de uma forma distinta de ver o mundo dos negócios. De prazos de análise e foco distintos. De ferramentas de trabalho que, concorrendo para o mesmo, podem ter interpretações diferentes quando olhamos para elas no curto prazo ou no longo prazo.

Da economia, sabemos que no curto prazo, a nossa capacidade de intervenção é limitada — que alguns dos critérios terão de existir, ceteris paribus, e que apenas alguns fatores estão disponíveis para afinamentos, alterações, em prol do resultado final. No longo prazo, tudo é mutável. Estas visões distintas de algo que parece ser o mesmo objeto de análise, por vezes, fazem com que o discurso de marketing soe como algo distante e, até mesmo, irrelevante, e o discurso comercial, redutor e inconsequente.

Os números não mentem — e são brutalmente honestos neste caso. Segundo o relatório da HubSpot sobre Tendências de Vendas (2024), organizações com um alinhamento forte entre marketing e vendas têm uma probabilidade 103% maior de alcançar performance comercial positiva, comparadas com empresas onde estas áreas trabalham em silos. É como tentar dançar um tango onde cada parte ouve uma música diferente — o resultado é inevitavelmente caótico.

Em Portugal, sinto que esta divisão é amplificada por um equívoco fundamental e enraizado que já mencionei: a equivalência simplista entre Marketing e Comunicação. Profissionais em início de carreira são frequentemente surpreendidos pelas exigências analíticas do verdadeiro marketing, enquanto a gestão estratégica de marca — o maestro estratégico desta orquestra corporativa — é regularmente negligenciada. O resultado? Uma sinfonia sem direção, onde músicos talentosos tocam sem partitura comum, criando uma cacofonia que falha em envolver a sua audiência.

A solução não passa por forçar o marketing a falar exclusivamente em métricas de vendas, nem por exigir que as equipas comerciais abracem cegamente conceitos abstratos de marca. Requer uma liderança que construa pontes, criando KPIs partilhados e sistemas de objetivos que incentivem a colaboração. Exige um departamento de marketing capaz de traduzir o valor da marca em vantagens comerciais concretas, e uma equipa de vendas que compreenda como a força da marca pode fazer a diferença na negociação e na entrega de resultados, dia após dia.

No panorama digital atual, onde os consumidores têm acesso instantâneo a informação e alternativas, o custo do desalinhamento entre marketing e vendas é mais elevado do que nunca. A experiência do cliente deve ser consistente em todos os pontos de contacto, desde a primeira mensagem de marketing até à última interação comercial. A transformação digital não só mudou mentalidades e comportamentos, como também amplificou a necessidade de consistência — uma consistência que deve ser inquestionável nas dinâmicas internas para sobreviver até aos pontos de contacto com o consumidor.

Chegou a hora de derrubar os muros entre a torre de marfim do marketing e as trincheiras das vendas. Marcas fortes não se constroem apenas com apresentações bonitas, nem negócios sustentáveis se edificam exclusivamente com mudanças táticas de variáveis estratégicas. O futuro pertence às organizações capazes de desenvolver a visão estratégica do marketing como ferramenta para a capacidade de execução das vendas. A questão já não é se o marketing ou as vendas são mais importantes — é quanto tempo mais podemos permitir que esta guerra interna sabote as próprias marcas que ambos tentam construir.

Entre cafés, reuniões e debates acalorados, resta-nos esperar que, num futuro não tão distante, possamos ver empresas onde a estratégia e a execução caminhem lado a lado, criando uma cultura de integração que faça justiça ao potencial de cada marca. Até lá, continuamos a observar esta dança descompassada, onde cada área segue o seu próprio ritmo, enquanto as verdadeiras oportunidades de crescimento nos passam ao lado.

  • José Pedro Marques da Silva
  • Head of brands and market development da Lactogal

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