“Nunca serás criativa”

  • Susana Albuquerque
  • 9 Março 2023

O síndrome do impostor, junto com as palavras daquela CEO nos anos 90, têm funcionado como “reverse coaching”. São um bom combustível para alimentar a minha vontade diária de fazer bom trabalho.

Nota prévia: Em 2021, escrevi este texto para o dia da mulher a convite dos LIA Awards. Publico o mesmo texto em português no ano em que faço 30 anos de publicidade, a pensar em todas as mulheres que trabalham em criatividade.

 

Tive o meu primeiro trabalho em publicidade em 1993. Tinha acabado o curso e soube de uma vaga de estágio num departamento de meios. Não pensei duas vezes. Queria ser redatora e, mais que isso, queria trabalhar numa agência de publicidade.

Ser estagiária em meios naquela altura significava fazer clipping de jornais e revistas enquanto via os planeadores trabalhar. Ser planeador de meios, nesses tempos, consistia em decidir se havia dinheiro para investir em televisão, caso contrário fazia-se uma campanha de outdoor, imprensa e rádio. Não era o trabalho mais interessante do mundo mas era suficientemente novo para mim.
Passados poucos meses, a minha agência fundiu-se com outra, os dois planeadores seniores demitiram-se e eu fiquei, à espera da prometida oportunidade de mudar para o departamento criativo.

Alguns meses mais tarde, a nova CEO da agência chamou-me para me agradecer o esforço e por ter ficado durante aqueles tempos agitados. Eu pensei que aquela conversa era o momento certo para lhe recordar que eu queria ser redatora. Mas, sem pestanejar, ela disse-me que eu nunca seria criativa, pelo menos naquela agência. Segundo esta CEO, quando alguém era bom a fazer alguma coisa não era bom a fazer outra coisa, e aparentemente eu tinha jeito para os planos de meios. Para esta CEO, que por coincidência era mulher, eu nunca seria criativa porque era uma promissora planeadora de meios.

Ouvi estas palavras com muita deceção. Tinha 22 anos e não podia ser mais insegura. Despedi-me no dia seguinte. Para pagar as contas, trabalhei mais 6 meses noutra agência de meios até que consegui o meu primeiro estágio num departamento criativo.

Fui redatora durante 8 anos. Sou diretora criativa há 22 anos, faço 30 anos de publicidade este ano. Nunca tinha feito estas contas, talvez porque continuo a sentir o entusiasmo dos primeiros tempos, quando ouço um bom brief e penso nas possibilidades.

Nestes 30 anos, acho que trabalhei para todo o tipo de marcas e categorias. Ganhei e perdi concursos, ganhei e perdi clientes, e continuo a olhar com orgulho para muitos dos projetos que ajudei a fazer. Ganhei prémios, fui contratada e contratei muita gente, e aprendi muito nos dois casos. Foi convidada para trabalhar fora de Portugal, primeiro detestei a experiência, depois adorei a experiência, e depois regressei a Portugal.

Desde o dia em que aquela CEO me disse que eu nunca seria criativa, trabalhei como copy na Wunderman, na Publicis e na Bates, e como diretora criativa na Bates, na Lowe, na Y&R e na DDB. Voltei para Lisboa há 6 anos para ser diretora criativa da Uzina, uma agência independente da qual agora sou sócia. Sou também presidente do Clube da Criatividade de Portugal. Continuo a sentir o síndrome do impostor quase todas as noites, quando vou dormir. Costuma desaparecer de manhã.

Acho que o síndrome do impostor, junto com as palavras daquela CEO nos anos 90, têm funcionado como “reverse coaching” para mim. São um bom combustível para alimentar a minha vontade diária de fazer bom trabalho.

Agradeço a ambos o que fiz até agora e o que ainda quero fazer, que espero que seja melhor. E acima de tudo agradeço a maior lição que recebi daquela CEO: ninguém a não ser tu própria pode dizer-te o que podes ser ou fazer. Por isso, Teresa, se alguma vez ler estas linhas, obrigada pelas palavras pouco amáveis.

  • Susana Albuquerque
  • Presidente do Clube da Criatividade de Portugal e diretora criativa executiva e partner da Uzina

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

“Nunca serás criativa”

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião