O Jobs e o O’Leary entram num bar. E eu chego a seguir

  • Nuno Antunes
  • 29 Maio 2025

Nesse tal mundo, em que agora a estrela que está no palco é a IA (Generativa), será que estamos a valorizar a tal felicidade e a experiência humana?

Meti o Gustavo Santos e o Vasco Granja numa Bimby, salvos sejam, para vos falar de felicidade. Para isso, apresento-vos o livro infantil “O Vendedor de Felicidade”, da autoria do ex-contabilista Davide Cali e do ilustrador Marco Soma. Fala-nos de um vendedor ambulante, o Senhor Pombo, que numa carrinha barulhenta chega a uma grande árvore para vender frascos de felicidade aos pássaros que nela vivem. E há de vários tamanhos, de acordo com a felicidade que cada um precisa.

E todos compram, em função das suas posses, da sua situação pessoal e do seu ciclo de vida, em linha com as suas ansiedades, aspirações e confiança no futuro. Lá está, acreditam que a felicidade pode ser adquirida.

Chegados aqui, percebo perfeitamente se perguntarem: porquê puxar para aqui este assunto? É porque as marcas, dos mais variados setores, são isso mesmo. São um Senhor Pombo, o vendedor da felicidade. Devem gerar valor emocional aos seus públicos, muitas vezes indo além do produto ou serviço em si.

E há vários exemplos que me podem ajudar nesta ilustração:

  • Uma seguradora dá-nos o conforto e o descanso quando algo pode correr mal. Protege-nos, sobretudo, em momentos de maior turbulência para termos histórias com final feliz;
  • No setor do turismo, talvez o mais evidente nesta matéria, encontramos experiências, memórias, liberdade, fuga à rotina e aos problemas, momentos inesquecíveis e por aí fora. E as marcas que nele operam são quase como catalisadores de sonhos realizados. Veja-se o caso do Airbnb que promete não apenas estadias, mas a oportunidade de pertencer a qualquer lugar do mundo;
  • Numa área que me é particularmente muito cara, alimentação e bebidas, há também aqui uma clara ligação ao prazer, à celebração, ao conforto e à socialização. Apesar de nos apresentar um espetro de comunicação muito variado, a McDonald’s aponta sempre para uma baliza onde associa a marca à diversão e à família, com um forte apelo emocional às crianças (ex.: Happy Meal);
  • Na tecnologia e na eletrónica de consumo, as marcas oferecem-nos conveniência, facilitam-nos a vida, conectam e juntam pessoas, proporcionam entretenimento e criatividade;
  • No desporto, na moda e na beleza as insígnias conectam-nos à autoestima (como é o caso da Dove com as suas campanhas centradas na aceitação do corpo), à expressão pessoal, ao bem-estar e ao empoderamento. Sobre isto, veja-se o legado que a Nike nos deixa, inspirando a superação e a autoconfiança com o “Just Do It”. Não nos vende só equipamentos desportivos, mas também uma mentalidade.

Paralelamente, há muito tempo que as palavras “eficiência” e “eficácia” pululam em todos os PowerPoints que tratam das decisões de negócio.

Reflexo disso, recordo-me da campanha inusitada da Ryanair, brilhante do ponto de vista criativo, diga-se de passagem, com o conceito “With prices this cheap, shut the f*ck up.

Nesse tal mundo, em que agora a estrela que está no palco é a IA (Generativa), será que estamos a valorizar a tal felicidade e a experiência humana? Será que as marcas têm essa preocupação com as pessoas? Cada um tem a sua resposta. Eu também tenho a minha.

Atenção que não estão em causa, nem a necessidade de apresentar bons resultados nem de recorrermos à tecnologia como facilitador. Podemos é questionar o propósito de como é utilizada.

Estou em crer que precisamos de um toque humano para melhor servir as pessoas, como ideia de autenticidade. Segundo o Hootsuite Social Trends (2024 Survey), 62% das pessoas afirmam que vão envolver-se menos com uma marca se perceberem que o conteúdo foi criado por uma aplicação de IA. No entanto, não é a IA em si que está em causa uma vez que a autenticidade poderá ser redefinida pelas marcas. Não se trata, pois, de quem cria o conteúdo. Refere-se, sim, à experiência que a marca, com seu conteúdo, cria para as pessoas:

  • Parece real?
  • Faz sentido?
  • Funciona?
  • Reforça os objetivos da marca?

Ao refletir sobre o futuro da humanidade e das marcas, temos de considerar a “dicotomia” entre o impacto da tecnologia (designadamente no que respeita à IA (Generativa) e à sua capacidade para amplificar a nossa criatividade e engenho) e a relevância da sua capacidade em tocar as pessoas.

A tecnologia sem dúvida que liga as pessoas. Mas, lá está, poderá tocá-las? Eventualmente não, e é por isso que voltamos ao tal sweet spot, ao equilíbrio que as marcas devem procurar entre o uso da tecnologia e do toque humano, envolvendo-as. Já Confúcio, o pensador e filósofo chinês do Período das Primaveras e Outonos (552 a.C. e 489 a.C.) nos dizia há uns anos largos: “Diz-me e eu vou esquecer. Mostra-me e talvez me lembre. Envolve-me e eu vou perceber.”

Apesar de estudar diariamente, de perceber um pouco do tema (eventualmente não, mas quero acreditar que sim) e de o aplicar na prática, este frenesim sobre o fenómeno da IA (Generativa) parece um pouco como o sexo na adolescência: todos falam; todos querem fazer; poucos já fizeram e esses não querem contar porque não correu como esperavam.

Antes que me chamem nomes feios, como velho do Restelo, negacionista ou afins, deixo-vos a nota de que a Gartner, a prestigiadíssima consultora com larga experiência na avaliação do potencial de adesão e impacto das tecnologias, através do seu modelo Gartner Hype Cycle, indica que a IA (Generativa) está na fase descendente após um pico de expectativas muito elevadas.

E, em minha opinião, não estão em causa o potencial e as capacidades que a IA (Generativa) nos traz. Estamos perante, não apenas uma tendência, mas uma tecnologia que corresponde a um ponto de inflexão dada a sua relevância e impacto. O busílis está em pensarmos que estamos perante um milagre, em que é só atirar esta tecnologia para cima dos problemas para sermos, como já dito, muito eficientes e eficazes. Falta conhecimento, falta critério, falta discernimento, falta não fazermos só porque os outros não se calam com isto ou até mesmo porque já o estão a fazer e faltam muitas outras coisas. Mas, mais importante que tudo, parece-me que falta não esquecer que a centralidade no cliente, a sua felicidade e experiência com a marca, devem constituir o ponto de partida e de chegada.

É por isso que começa a haver já alguns sinais de “AI-lergia” e descrença que pode derivar da confiança excessiva das marcas nesta tecnologia, negligenciando o tal lado humano com os próprios colaboradores e clientes. E depois podemos vir a ter de falar de uma desconexão com as audiências. Ou melhor, de uma dissonância que surge da comparação/ confrontação entre a expectativa vs. a experiência e a promessa vs. a entrega.

Humildemente, e em resumo, deixo algumas sugestões:

  • (Re)conhecer as pessoas e envolvê-las. Pensar na sua jornada de relação com a marca, com elas. Não basta que um conjunto de estrategas especialistas se fechem numa sala a interpretar estudos de opinião para a seguir opinarem inteligentemente sobre o que fazer em cima de frameworks de design duvidoso. Até porque normalmente têm carro da empresa e não andam de transportes públicos para perceber como é que as pessoas consomem na sua rotina produtos, serviços e conteúdos;
  • Não ser como as sardinhas que navegam em cardume: andam com atenção umas às outras, fazem o mesmo sem pensar e, quando se afastam, juntam-se. Estudem, formem-se, pratiquem e errem, claro. Mas façam-vos um favor: puxem pela vossa cabeça e não se deixem anestesiar pelo que se diz por aí.
  • Dever começar pelo problema. Meter a carroça à frente dos bois acho que não funciona, pois não?
  • Por último, o básico dos básicos: ter o foco no cliente, ou melhor, na centralidade no cliente. Há uns anos, Steve Jobs inspirou muita gente ao responder a uma pergunta, dizendo o seguinte: “Temos de começar com a experiência do cliente e trabalhar de trás para a frente com a tecnologia. Não podemos começar com a tecnologia e tentar descobrir onde vamos tentar vendê-la. E eu cometi esse erro provavelmente mais vezes do que qualquer outro nesta sala. E quando tentámos desenvolver uma estratégia e uma visão para a Apple, começou com: quais os incríveis benefícios que podemos oferecer aos clientes?; até onde podemos ir com os clientes? Não começar com: vamos sentar os engenheiros e descobrir qual é a incrível tecnologia que nós temos e como podemos comercializá-la”.
    Por muito exótico que o senhor O’Leary seja, estamos a falar de um bom propósito, da relação entre marcas e pessoas, que deve prevalecer ao longo do tempo, e depois sim, de negócio puro e duro.

Por isso, meus amigos, chegava, sentava-me ao balcão, pedia duas Sam Adams e atirava ao, entretanto, ressuscitado senhor Jobs: “Hey Steve, join me for a beer!”. Apesar de ser eu a pagar, sairia dali seguramente muito mais rico.

  • Nuno Antunes
  • business partner da Milford e professor ISCTE Executive Education

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