O milhão que todos devemos: se a Joana pagar, quem é o próximo?

  • José Pedro Marques da Silva
  • 12:26

Se começarmos a somar todos os momentos em que todas as marcas portuguesas se aproveitaram de situações alheias para criar conteúdo, a conta é de fazer corar o orçamento de Estado.

Antes de começar, a ironia de estar a escrever este artigo em real-time, aproveitando o contexto, está compreendida. Agora que isto sai de cima da mesa, comecemos.

 

Se Joana Marques for condenada a pagar o mítico milhão de euros por aquela piada, todos nós, marketers, estamos oficialmente tramados. E não é exagero. É matemática pura. Porque se fazer humor com uma prestação pública questionável vale um milhão de euros, então a fatura que toda a indústria publicitária deve é, potencialmente, astronómica.

Cada post de real-time marketing que fazemos é potencialmente uma bomba de um milhão de euros. Cada piada sobre alguém, cada meme que criamos aproveitando um momento mediático, cada post “espontâneo” que aproveita um fail alheio — tudo isto pode agora valer uma fortuna em tribunal.

Vamos ser honestos: o que é que muitos fazemos no marketing digital senão exatamente aquilo que Joana Marques fez? Aproveitamo-nos de momentos, criamos conteúdo em cima de glórias, conquistas, fails, fazemos piadas com situações do momento. É literalmente a forma como muita presença digital foi construída até hoje.

Todos os dias, em salas de reunião por todo o país, marketers perguntam: “Como é que podemos aproveitar isto?”. Um político comete uma gaffe, uma celebridade faz figura triste, um evento corre mal — e lá estamos nós, prontos para criar conteúdo que capitalize sobre o momento. (Também os fazemos com as boas notícias e conquistas, é importante referir).

É o ADN do marketing digital moderno: velocidade, “oportunismo” e, claro, uma pitada de risco calculado. Chamamos a isto “marca com personalidade”, “tom de voz irreverente”, “engagement autêntico”. Ganhamos prémios por isto. Fazemos case studies. Ensinamos em universidades.

Porque resulta! Cria engagement, cria interações diretas e ricas com o consumidor num dos únicos canais de marketing que funciona como diálogo e não é apenas unidirecional. E agora descobrimos que cada momento destes pode custar um milhão de euros?

Se começarmos a somar todos os momentos em que todas as marcas portuguesas se aproveitaram de situações alheias para criar conteúdo, a conta é de fazer corar o orçamento de Estado.

Façamos um exercício mental aterrorizante: se cada pessoa, marca ou instituição que alguma vez foi alvo do nosso “humor estratégico” decidir seguir o exemplo e processar-nos pelo mesmo valor, quanto pagamos?

Cada político que satirizámos numa campanha eleitoral: um milhão. Cada concorrente que gozámos numa batalha de marcas: um milhão. Cada celebridade que transformámos em meme para uma marca: um milhão. Se a sentença for aquela que espero que não seja, há coisas a repensar.

O caso não é sobre os Anjos ou sobre Joana Marques. É sobre o precedente. Se um tribunal português decidir que fazer humor com uma prestação pública vale “um milhão de euros”, então acabou-se o humor do século XXI no marketing. Condiciona-se o real-time marketing e, em alguns casos, a irreverência das marcas. O risco legal torna-se maior que o benefício do engagement.

A ironia é que todos nós, na indústria, sabemos que Joana Marques não fez nada de extraordinário. Fez aquilo que nós fazemos profissionalmente, diariamente, estrategicamente. A diferença é que ela fez sozinha, personificada, plenamente identificada.

Cada agência de publicidade portuguesa tem (ou gostaria de ter) centenas de casos de real-time marketing no portefólio. Cada social media manager tem (ou gostaria de ter) dezenas de posts que aproveitaram momentos alheios. Cada brand manager (ou gostaria de ter) tem campanhas que se aproveitaram de situações no timing perfeito.

Se este precedente vingar, se começarmos a aceitar que aproveitar momentos para fazer humor vale processos milionários, então todos temos uma conta pendente. E essa conta pode chegar a qualquer momento, vinda de qualquer entidade que alguma vez for alvo das nossas “estratégias criativas”.

Este caso é o momento da verdade. Não é sobre escolher lados — a opinião pública já escolheu (e escolheu bem). É sobre perceber que se Joana Marques for condenada, nós somos os próximos. Porque se fazer uma piada sobre uma prestação pública questionável vale um milhão de euros, então cada post de real-time marketing que já fizemos (e os que ainda faremos!) é uma potencial bomba-relógio.

O título não mente: todos devemos um milhão. Talvez mais. A diferença é que ainda ninguém nos apresentou a conta. Mas se este processo criar precedente, se estabelecer que o humor é passível de indemnizações milionárias, então a fatura tem um potencial de chegar. E tem um potencial de comprometer o investimento de marcas, a sua agilidade e a forma de muitas, hoje, estarem presentes num dos principais canais de investimento do marketing digital nacional.

Até lá, continuamos a fazer o nosso trabalho, a aproveitar momentos, a utilizar o humor tático, estrategicamente pensado para nos elevar no contexto do marketing atual.

  • José Pedro Marques da Silva
  • Head of brands and market development da Lactogal

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