Se há mercado para isto, o problema não é o produto

  • José Pedro Marques da Silva
  • 14 Abril 2025

O caso "No Mercy" tem de ser um momento de confronto. Não apenas com os limites das plataformas, mas com o que aceitamos normalizar culturalmente.

O título pode parecer desresponsabilizar quem criou o mencionado produto, mas peço-vos a vossa paciência até ao final do artigo. Para contexto, foi retirado da plataforma Steam um videojogo, de nome “No Mercy”, onde o jogador tem como que carta branca para (e objetivo de) abusar do máximo de personagens femininas. Este jogo não foi apenas criado. Foi publicado. Promovido. E, acima de tudo, teve downloads suficientes para despertar um alarme.

E aqui está o que me inquieta. Não é o facto de este jogo existir. O mais inquietante é que houve mercado para ele. Na teoria económica, o mercado é onde a oferta e a procura se encontram. Os produtos só existem — e prosperam — porque há uma procura que os justifica. Esta lógica fria e funcional explica-nos a realidade de todos os produtos com que interagimos no dia a dia. Mas quando aplicamos essa racionalidade a produtos como “No Mercy”, a frieza transforma-se em consternação: se há oferta, é porque há procura. E se há procura, há desejo. Não estamos apenas a falar de um desvio marginal, mas de propiciar a normalização de fantasias desenquadradas, desenfreadas de poder, dominação e violência, num preocupante contexto de relatos diários de situações de assédio, invasão de privacidade, violações. Nem tudo o que tem procura merece ser produzido.

E esta é a verdade desconfortável: um produto só é relevante quando há consumo. Um produto só existe porque há um mercado disposto a desejá-lo. E se há mercado para a encenação de crimes sexuais sobre mulheres, então a pergunta não é apenas como foi validado (e apresentado como sendo “apenas um jogo)”, é o que diz isto sobre a sociedade em que vivemos

O consumo não é apenas funcional. É expressivo. O que vestimos, o que comemos, o que partilhamos nas redes sociais, os produtos que usamos e, sim, os jogos que jogamos são extensões da nossa identidade. Alinham-se com os valores que temos, projetam os que gostaríamos de ter, e ajudam-nos na construção de uma perceção partilhada do “eu”. O consumo é linguagem. É forma de dizer quem somos, quem queremos ser, onde pertencemos. Quando alguém escolhe um produto como “No Mercy”, está a enviar uma mensagem. Mesmo que não a verbalize. Mesmo que a esconda.

Por sua vez, as marcas não existem no vácuo. Elas são construídas a partir de desejos, tensões, ambições e frustrações que já estão no tecido cultural. Um produto não cria mercado sozinho. Ele responde a algo que já está lá fora, que é desejado. Steve Jobs (e, antes disto, já Ford) dizia que o consumidor não sabe o que precisa. Mas a verdade é que sabe qual a necessidade que tem, o que pretende e quer. Pode não saber como o obter. E aí entram as marcas e os seus conceitos. Neste sentido, “No Mercy” é um espelho negro. Revela que o problema não é apenas do lado da oferta. É o desejo. O apetite. E o apetite, no marketing, é o mercado.

As marcas vivem de saber o que as pessoas querem, por vezes antes mesmo delas o saberem. De criar necessidades. Mas aqui, a pergunta que deve ecoar é: e quando o que as pessoas querem é eticamente condenável? A quem cabe a responsabilidade de dizer não? Ao criador? À plataforma? Ao regulador? Sim. Mas também a nós, consumidores. Porque o mercado não é uma entidade abstrata. Somos todos nós. Somos o algoritmo, o fluxo, a audiência.

Quando um conteúdo destes ganha relevância, a pergunta é: que tipo de cultura está a alimentar este desejo? Que tipo de silêncios, de misoginia enraizada vive (e cresce?) entre nós?

Tal como os sintomas de uma doença revelam o que o corpo não consegue verbalizar, produtos culturais extremos revelam o que muitas vezes está encoberto nas estruturas sociais. “No Mercy” não é apenas um produto grotesco. É um sintoma de uma sociedade doente. E é também um alerta para os limites do que se entende como “liberdade criativa”. A liberdade sem responsabilidade não é liberdade. É negligência com consequências reais.

Às vezes, a desculpa é: “existe apenas para um nicho”. Mas o problema é precisamente esse. Que esse nicho exista. Que seja significativo o suficiente para justificar o investimento em design, código, marketing. Que haja uma audiência silenciosa, mas rentável. No marketing, aprendemos que onde há uma dor, um ponto de tensão, há oportunidade. Mas talvez esteja na hora de contextualizar essa ideia. Onde há dor, talvez haja um dever. Um dever de não explorar, de não transformar trauma em entretenimento. De não mercantilizar a violência como se fosse mais um nicho. Nomeadamente, num contexto de tensão em tantas dimensões, a um nível global, onde facilmente sentimos que estamos a um rastilho curto de tudo ganhar uma desproporcionalidade irreversível.

Marcas definem-se tanto pelo que fazem como pelo que recusam fazer. O que não lançam. O que não dizem. O que rejeitam monetizar. Num mundo obcecado com “dar ao consumidor o que ele quer”, é altura de nos perguntarmos se somos nós que queremos dar-lhe a resposta a determinadas “necessidades”.

O caso “No Mercy” tem de ser um momento de confronto. Não apenas com os limites das plataformas, mas com o que aceitamos normalizar culturalmente. Se a cultura é um reflexo de quem somos, então o mercado é um reflexo de para onde estamos a ir. E se não nos chocarmos com o tipo de produtos que surgem, é porque já estamos dessensibilizados demais.

As marcas têm poder. E têm responsabilidade. Criar cultura é criar mundo. É dar forma ao imaginário coletivo. E quando esse imaginário é povoado de violência sexual romantizada, estamos a criar um mundo onde o abuso se torna simulável, explorável e consumível. E aí, lamento, o problema não é o produto.

  • José Pedro Marques da Silva
  • Head of brands and market development da Lactogal

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