Um camelo ou um carro da agência, tanto faz

  • Nuno Antunes
  • 13:06

Quantas vezes não nos sentimos perdidos, temos dúvidas e andamos confusos? Decidir é melhor que não decidir, mas decidir parar também é uma decisão tão legítima e válida como outra qualquer.

Acho que ainda não vos tinha falado do Mohamed, pois não? Pois bem, conheci este jovem, um berbere marroquino, mais especificamente tuaregue, em 2009. Até podia ser tamazight ou chleuh, mas não. Era mesmo tuaregue.

Sem carta de condução, este guia envergonhava o Peterhansel, tal a forma com que surfava, com o carro da agência do Diretor Criativo que levei para estas andanças (agora já não faz mal contar isto, porque o crime prescreveu). Não eram ondas, obviamente, até porque estávamos algures em pleno deserto do Saara, numa vasta extensão de dunas de areia fina e dourada, que o vento molda a seu bel-prazer e impede o crescimento da vida vegetal. É mesmo ali perto de Zagora, mais concretamente em Erg Chegaga. Já agora, permitam-me esta nota de rodapé: não faleçam até lá darem um salto, com encontro marcado com o Mohamed, de preferência.

Pois bem, naquele ambiente absolutamente inóspito, tanto pilotava automóveis claramente incapazes de andar nos montes ali perto de Sobreira Formosa, a terra dos meus avós, quanto mais ali, como também o fazia com camelos. Contou-me histórias de algumas viagens que fazia em pleno deserto, dali até ao Mali. Por mais de 50 dias, conduzia aqueles ungulados artiodáctilos em fila indiana, sempre chegando sãos e salvos a “bom porto” (as aspas aqui empregues são evidentes).

Mas num ecossistema tão igual, sem uma via sequer, lembrei-me de lhe perguntar: “Nunca te perdeste?”. Prontamente respondeu: “Perco-me sempre que vou e várias vezes.” Fiquei de boca aberta com a resposta e voltei ao tema para indagar mais um pouco: “E o que é que fazes quando isso acontece?”. Se já estava de boca aberta, a resposta deixou-me atónito: “Não faço nada. Paramos.”. Armei-me em Sherlock Holmes e ali mesmo decidi abrir uma investigação: “Então ficas parado no meio do deserto em condições extremas, em vez de avançares?”. “Claro”, respondeu automaticamente. “É que se continuar sem saber por onde vou, simplesmente morro.”

E foi aqui que registei uma das maiores lições da minha vida, que se aplica aos temas mais pessoais, aos profissionais, enfim, a tudo. Quantas vezes não nos sentimos perdidos, temos dúvidas e andamos confusos porque estamos a viver algo de novo, andamos baralhados e atrapalhados e temos vários caminhos pela frente?

Eu bem sei que decidir é melhor que não decidir, mas decidir parar também é uma decisão tão legítima e válida como outra qualquer. Pausar, tirar um tempo ou dar tempo ao tempo, como nos diz a sábia cultura popular.

Estamos perante uma espécie de paradoxo que nos desafia a todos, mesmo os mais experientes. E esta incoerência acentua-se ainda mais porque, quanto maior a quantidade de opções e informações disponíveis, mais difícil se torna tomar uma resolução.

Estamos a entrar no tão merecido e desejado período de férias. Altura de paragem e pausa, portanto. Tenho escrito aqui sobre Marketing e afins e, continuando o foco no mesmo, todos nós que trabalhamos com marcas, podíamos aproveitar este momento para ir pensando nelas, não de forma forçada, mas deixando os pensamentos virem e irem, fora da pressão do dia atolado de reuniões, de processos e de objetivos de curto prazo. É assim que muitas vezes conseguimos sair do “ramerrame” ou perceber que estamos a usar o humor como bengala (às vezes sem graça nenhuma) para chegar aos nossos públicos. Parece que há, assim, uma fórmula e uma cartilha para a nossa atividade.

Podíamos também escolher um destino de férias diferente do habitual, com culturas distintas das nossas como a do Mohamed, que nos trazem insights que não têm nada a ver com aqueles que nos caem no dia a dia ao colo. E isso pode trazer-nos coisas novas que é o que uma ideia deve ser: uma coisa nova, por inerência.

E porque não perceber que podemos ter um novo hobby a partir de agora? Por exemplo, aprender a tocar bateria, para depois formar um grupo que atue em casamentos, batizados e festas da aldeia, para melhor percebermos como é que as pessoas que não têm carro da empresa e que não vivem na urbe como nós, consomem os nossos produtos e serviços.

São só alguns tópicos para reflexão nesta paragem. Depois avançar pelo caminho que entendermos seguindo a máxima do matemático Bento de Jesus Caraça: “Se não receio o erro, é só porque estou sempre pronto a corrigi-lo”.

É que, apesar de tudo, não temos as dúvidas dramáticas do Mohamed, que se seguir pelo caminho errado… Mas, pelo que sei ainda está bem vivo.

  • Nuno Antunes
  • business partner da Milford e professor ISCTE Executive Education

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