Kevlar

  • Pedro Graça
  • 30 Março 2023

A IA é ótima a dar respostas, mas somos nós que fazemos as perguntas. O Kevlar que nos protege destes projeteis que vão matar a indústria é a capacidade de continuarmos a levantar a pergunta “e se".

Quando comecei a trabalhar em publicidade fui logo avisado: “chegaste tarde”. Por essa altura os departamentos de media estavam a separar-se das agências criativas e a autonomizar-se como empresas e essa separação, diziam muitos, seria fatal para as agências de publicidade que, amputadas do negócio de compra de espaço, dificilmente seriam viáveis.

Entretanto fui aprendendo que a história desta indústria estava cheia de mortes anunciadas da própria indústria: a chegada da televisão ia acabar com as agências (que só sabiam fazer publicidade para a imprensa e para a rádio), a chegada do controlo remoto ia acabar com as agências, porque as pessoas iam poder mudar facilmente de canal quando chegasse a altura dos blocos publicitários, a internalização das competências das agências na estrutura dos anunciantes ia acabar com as agências (já ninguém se lembra, mas LINTAS é o acrónimo de Lever International Advertising Services, a agência da Unilever para servir as suas próprias marcas).

A chegada da internet ia acabar com as agências, assim como a chegada dos ad blockers, da televisão com gravação automática, das consultoras, do programatic…

A famosa frase de Mark Twain “as notícias sobre a minha morte são manifestamente exageradas” assenta aqui como uma luva.

A todos estes anúncios de óbito certo a indústria foi resistindo. Alguns deles fizeram mossa, obrigaram-na a mudar, a repensar-se, mas ainda cá estamos.

Na sequência desta longa tradição de mortes anunciadas, vivemos agora mais uma. Mas, como todas as outras, “desta vez é que é”. A Inteligência Artificial vai acabar com as agências.

As possibilidades incríveis que esta nova tecnologia traz vão permitir que a comunicação passe a ser gerada por motores de IA. Passa-se o briefing ao ChatGPT ou similar, carrega-se no enter e, como que por magia, temos campanha.

Tudo isto sem ter que passar pelo inconveniente de ter uma agência pelo meio que quer briefings, tem opiniões e, pior que tudo, quer ser paga…

Não me parece que vá ser assim.

Arrisco dizer que a IA vai ser uma enorme ajuda para as agências porque, bem usada, a IA é uma ferramenta que pode libertar as agências de tarefas rotineiras de menor valor acrescentado e focá-las naquilo que é a sua natureza enquanto negócio, a sua razão de ser: ter ideias.

As experiências que temos feito na Havas com motores de IA, tanto para gerar textos, como para gerar imagens, têm resultados extraordinários.

No caso das imagens estamos a falar num salto gigantesco: a possibilidade de gerar uma imagem que é exatamente o que queremos versus encontrar num banco de imagens uma que seja aproximada ao que queremos é uma enorme mudança e um ganho de eficiência brutal. A possibilidade de gerar texto corrido para um conteúdo explicativo é também incrível.

Mas ainda não vi um motor de IA gerar uma ideia criativa, ou seja, responder a um pedido com aquele salto, com aquela descontinuidade que caracteriza as ideias criativas memoráveis.

John Hegarty, um dos fundadores da BBH, usa a imagem do “zag” para caracterizar uma boa ideia criativa: nas nossas vidas vamos na direção “zig”, uma boa ideia é a que, de repente faz “zag”, ao fazê-lo obriga-nos a dar por ela, a pensar sobre ela e, no fim do dia, fica-nos na memória, justamente porque representou uma descontinuidade.

Este “zag” pode assumir várias formas: pode ser o gorila da Cadbury a tocar bateria, os cavalos brancos a perseguirem o surfista da Guiness, o pastor da Telecel a atender o telemóvel ou alguém a derrubar uma parede para conseguir ter sinal de wi-fi.

O que há de comum em todas elas é que nenhuma resulta de um raciocínio linear, há sempre nelas um salto, uma disrupção, e isto, até agora, ainda não vi a IA fazer.

A IA é ótima a dar-nos respostas, mas somos nós que fazemos as perguntas. O Kevlar que nos protege destes projeteis que vão matar a indústria é a capacidade de continuarmos a levantar a pergunta “e se…”; e quanto menos linear e esperada for a hipótese que este “e se” nos abre mais relevantes e importantes seremos para as marcas com quem trabalhamos.

Dito de outa forma a relevância das agências criativas está, imagine-se, em continuarem a ser… criativas. Quando forem só agências, aí sim, venha a IA e tome conta do que sobra.

 

  • Pedro Graça
  • CEO da Havas Portugal

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