Desbloqueio Criativo

  • Duarte Vilaça
  • 4 Abril 2023

Se as circunstâncias ditaram a valorização da criatividade, este é o momento certo para que cliente e agência olhem para a sua relação de uma forma mais ambiciosa. Para bem de um e de outro.

Desbloquear carrinhos de compras com moedas é das ideias mais menosprezadas da História. Não teve honras de nome próprio, como aconteceu com a chave Phillips de Henry Phillips ou com o Tupperware de Earl Tupper, mas a verdade é que há mais de meio século que milhões e milhões de clientes adiantam dinheiro para poderem, logo de seguida, gastar mais dinheiro e – ainda mais surpreendente – voltarem a deixar os carrinhos impecavelmente arrumados, no seu devido sítio, antes de voltar a casa.

O impacto da ideia faz-se sentir por todo o mundo, no balanço de grandes retalhistas que, assim, resolvem temas ligados a roubo, segurança, logística e layout dos seus espaços comerciais.

Interessa, no caso em particular, o facto de conjugar insights sobre o consumidor (que fará tudo para recuperar os 50 cêntimos adiantados) e uma série de desafios operacionais de negócio, o que leva a supor que tenha sido o resultado de um processo multidisciplinar, em tudo semelhante ao de ‘design thinking’.

Os últimos anos foram pródigos em acontecimentos inesperados, com impacto global, que vieram acrescentar camadas de complexidade a outros fenómenos igualmente transformadores, vindos de trás, como a transição energética, a digitalização ou a escalada de fusões e aquisições entre agentes económicos nos países mais desenvolvidos.

Os inúmeros casos de reposicionamento de marca na indústria automóvel, como o da Citroën, são um pequeno exemplo desta realidade.

Esta conjugação de fatores relançou a discussão sobre a importância da criatividade nos negócios, facto bem demonstrado no Future of Jobs Survey, conduzido pelo Fórum Económico Mundial. Nesse relatório, executivos de topo elegeram a inovação, criatividade e originalidade entre o top 5 de competências mais valorizadas pelas organizações até 2025.

Esta visão recomenda uma mudança na relação de algumas empresas com a criatividade, nomeadamente as que se habituaram a contratá-la em vez de a desenvolver. Essas empresas – normalmente as maiores – tendem a tornar-se criativamente preguiçosas na medida em que olham para a criatividade como algo externo à organização ou – no limite – da responsabilidade do pelouro de marca ou marketing.

A criatividade de que se fala hoje é a interna, que vive na cultura e em cada pessoa da organização. Significa isto que, sob esta perspetiva, as agências estão fora da equação? Claro que não, porque devem ser chamadas a intervir na sua construção e respetiva implementação no dia-a-dia dos negócios. O capital criativo das agências, aliado ao facto de serem entidades externas às organizações conferem-lhe a distância necessária para perspetivar, desafiar ainda mais e ajudar a implementar a mudança.

O que parece claro é que, se as circunstâncias ditaram a valorização da criatividade, este é o momento certo para que cliente e agência olhem para a sua relação de uma forma mais ambiciosa. Para bem do negócio de um e outro.

Na perspetiva das empresas, o primeiro passo consiste em ultrapassar a estereotipação da criatividade. Desde logo nas organizações, quando se escolhe (ou exclui) agentes e beneficiários de processos de desenvolvimento criativo mediante o seu papel na empresa. Se existe criatividade na prática de gestão, jurídica, tecnológica ou logística, entre outras, assuma-se que todos devem ser agentes e beneficiários do processo. E não apenas os do costume.

Ultrapassar estereótipos relacionados com a criatividade passa também, do lado das agências, por ir além da estafada arrumação de serviços entre publicidade, design, comunicação, digital ou eventos. Facto sistematicamente confirmado, aliás, nos prémios da própria indústria, cuja estrutura e amplitude é limitativa e redutora do real contributo que as agências e os criativos portugueses podem trazer às marcas – e negócios – com que trabalham.

Se, para o cliente, a criatividade será mais inclusiva e multidisciplinar, do lado das agências terá de existir reflexão sobre os territórios que quererão reclamar para si próprias nesta nova era. Se os horizontes se expandiram, as agências devem expandir-se com elas, reforçar competências, alargar a sua prestação aos novos desafios dos negócios e mudar a forma como comunicam a sua proposta de valor.

A competição pela captação de retenção de talento, por exemplo, e a forma criativa como empresas como a MailChimp têm adereçado o tema, é ilustrativo dos benefícios que clientes e agências poderiam retirar de uma colaboração muito mais focada noutras áreas, como por exemplo o employer branding, product innovation ou customer experience.

O acesso a novas áreas e interlocutores nas empresas permitirá às agências ganhar uma visão mais ampla sobre os negócios, ser mais assertivas nas soluções propostas e valorizar os seus profissionais. Tornando-se ainda mais relevantes para os seus clientes.

Num contexto necessariamente mais partilhado, é novamente a marca que emerge como veículo de agregação. Capaz, nos dias que correm, de ser a plataforma de referência nas organizações para incutir transversalmente, entre outros fatores fundamentais, uma cultura de criatividade.

“Seremos suficientemente curiosos?” questionou-se poderosamente a Merck, por ocasião do seu reposicionamento estratégico, em 2016. Estabelecendo um tom desafiador, capaz de exigir o melhor de todos os que trabalham na e com a farmacêutica norte-americana.

É este o tipo de perguntas, colocadas a todos por igual, que conseguirá recrutar e desenvolver a criatividade de todos os stakeholders. Para que um pequeno carrinho de compras, devidamente acorrentado à espera da próxima moeda, possa merecer as mesmas palmas que a mais aclamada campanha publicitária.

  • Duarte Vilaça
  • Partner e chief creative officer da Born

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