“Reza e lava os dentes”
Poderão questionar por que motivo está um de vós a achincalhar a classe com esta conversa de cravo e ferradura. Explico.
O CEO de uma empresa líder no setor de bens de consumo alimentar deu uma entrevista, não há muito anos, onde dizia que “o marketing é demasiado importante para estar nas mãos do diretor de marketing”. Esta afirmação tem duas leituras, consoante lhe queiramos dar o benefício da dúvida. Por um lado, o marketing deve ser visto como uma disciplina transversal à empresa. Por outro lado, o departamento de marketing não tem as competências necessárias para executar essa tarefa.
Costumava dizer-se, como piada, que “os profissionais de marketing são muito bons a resolver os problemas que eles próprios criam”. Mais uma vez, duas leituras. O marketing é uma disciplina fútil e acessória, cujo contributo para as empresas resulta da sua capacidade de se fazer importante. Por outro lado, compete ao marketing desafiar as organizações, na relação com os seus diferentes públicos, para introduzir fatores como diferenciação e inovação, adaptação ao mercado e valor de marca.
As visões redutoras do marketing resultam da ignorância em relação ao seu contributo, e remontam a uma mentalidade mais tradicional quando era visto como um centro de custos. Cada vez há menos preconceitos implícitos nos “soft skills” do marketing, historicamente pouco considerados pelas áreas de negócio. As competências interpessoais revelaram-se essenciais nas organizações. Aspetos como criatividade, capacidade analítica e de exposição, colaboração e resolução de problemas são hoje muito valorizados.
Poderão questionar por que motivo está um de vós a achincalhar a classe com esta conversa de cravo e ferradura. Explico. O modelo de transformação do marketing numa disciplina respeitada e integral nas organizações pode, paradoxalmente, tornar-se o seu maior desafio. Várias personalidades influentes – Kotler, Godin, Ogilvy, Drucker, entre outros – contribuíram para mudar a perceção do marketing e destacar sua importância.
O marketing assume atualmente uma função estratégica nas empresas. Tornou-se uma voz influente nas decisões de negócios, liderando áreas cruciais como transformação digital, experiência do consumidor, medição de impacto e construção de marca. Estes constituem os novos ativos que impulsionarão as empresas para o futuro. Contudo, o seu contributo está condicionado por uma prevalência dos resultados de negócio à construção e valorização das marcas.
São conhecidas as rivalidades entre as áreas comerciais e as áreas de marketing. Com as novas funcionalidades que a tecnologia permite, é possível “recrutar” o consumidor no momento exato da decisão de compra, e assim desperdiçar menos recursos em comunicação. Afirmar o contrário, ou seja, que é necessário construir relações com as marcas, é uma espécie de regresso ao passado, quando o marketing era considerado uma disciplina superficial, cujo valor aportado ao negócio não estava comprovado.
As marcas também são cultura social e devem ter uma voz própria, relevante. Devem criar tendências e não andar às cavalitas do Tiktoker do momento. De que outra forma poderão despertar desejo e desenvolver relação próximas com os seus públicos? António Damásio defende que todas as decisões humanas são baseadas numa emoção. Segundo Timothy Wilson estes processos mentais são inconscientes. Ou seja, quando uma marca converte uma impressão numa venda está a utilizar um algoritmo baseado num estímulo imediatista para despoletar uma ação, mas não está a construir uma relação emocional capaz de despoletar interesse futuro. Neste combate ganham os atributos funcionais, como preço, conveniência, oportunidade, e a capacidade de investimento contínuo.
Naturalmente, as marcas devem equilibrar os dois processos, o de conversão imediata e o de construção de valor. Por causa da tentação legítima dos resultados rápidos, assistimos muitas vezes a um marketing comprometido e à transformação de estratégias de comunicação em mecânicas de conversão. Este marketing, sem dúvida eficaz, está a negligenciar a sua génese, o seu inconformismo, a capacidade de desafiar e de construir uma presença duradoura e de estabelecer relações emocionais com os consumidores.
Podem dizer que há dois elefantes nesta sala. Se as estratégias de curto prazo, orientadas para a conversão, estão a funcionar, e se as empresas têm recursos limitados, não há motivo para investir esforços em construir marcas. Este argumento é válido, mas implica uma capacidade ininterrupta de recrutamento, contra uma concorrência cada vez mais indiferenciada. Por outro lado, são frequentemente as agências – parte interessada – a trazer este assunto para discussão. Na realidade, as agências executam as duas estratégias.
Em 2005 a McKinsey apelidava as tecnologias de comunicação OTT de “just parasites”. Descartavam negócios como o Skype e mais tarde o WhatsApp. Em 2017 estas tecnologias representavam 23% do negócio. Em 2022 mais de 60 marcas digitais direct-to-consumer representaram 3% do investimento publicitário em televisão nos Estados Unidos, com um crescimento de 26% face ao ano anterior. Estas marcas perceberam que têm de conciliar a sua atividade de performance, com métricas sofisticadas de segmentação, com uma presença em meios de notoriedade.
Em pequeno, costumava ouvir esta frase antes de ir dormir: “reza e lava os dentes”. Talvez fosse um dizer comum, sem especial valor ou significado. Mas avalio hoje estas palavras como um ensinamento valioso.
Devemos cuidar de todos os aspetos da nossa existência. Os aspetos físicos, higiénicos e práticos, e também os aspetos emocionais, mentais e imateriais, que não se veem e não se medem, mas que persistem subtis na nossa identidade e nas relações que nutrimos. Isto para dizer que as marcas devem “lavar os dentes” todos os dias, mas não podem deixar de “rezar”.
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