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Jornalistas absolvidos por violação do segredo de justiça: “Uma decisão importante para o jornalismo em Portugal”

Rafael Ascensão,

"Se nós também não nos defendemos deste poder arbitrário, qualquer dia por dá cá aquela palha, colocam-nos uma escuta telefónica, por exemplo", diz Carlos Rodrigues Lima.

Mais do que a minha absolvição, esta é uma decisão importante para o jornalismo em Portugal“, entende o jornalista Carlos Rodrigues Lima, sobre a decisão do Supremo Tribunal de Justiça de o ter absolvido – a si e ao jornalista Henrique Machado – pelo crime de violação do segredo de justiça.

O recurso tinha sido interposto pelos jornalistas relativamente ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de fevereiro de 2023, que os tinha condenado (em pena de multa) pelo crime de violação de segredo de justiça, alterando assim a absolvição decidida em primeira instância. Carlos Rodrigues Lima tinha sido condenado com pena de multa de 150 dias e 1.500 euros, por três crimes de violação de segredo de justiça, enquanto Henrique Machado recebeu pena de multa de 105 dias e 1.050 euros por um crime de violação do segredo de justiça.

Na origem deste processo esteve a divulgação de notícias sobre os casos dos emails do Benfica, E-toupeira e Operação Lex pelos dois jornalistas em 2018, e que envolveu a revelação, nalguns casos, de alguns atos processuais. Ao tempo dos factos, Carlos Rodrigues Lima era subdiretor da revista Sábado (atualmente é Grande repórter no Correio da Manhã/NOW) e Henrique Machado era jornalista do jornal Correio da Manhã (atualmente é editor de Justiça na CNN Portugal).

Ao contrário do que algumas pessoas do sistema de justiça pensam, os jornalistas podem escrever sobre processos judiciais em curso, desde que, como ficou mostrado no julgamento, não prejudiquem a investigação. E foi isso que eu disse desde o início deste processo”, refere o jornalista ao +M.

“O Supremo veio dizer o óbvio, que não existindo perigo, dano ou prejuízo para a investigação, as notícias tiveram importante relevância pública. E é isso que alguma almas no Ministério Público não percebem, porque o quadro mental deles ficou na Idade Média e alguns juízes do Tribunal de Relação de Lisboa também não percebem que vivemos em 2024 e que o país já não é o mesmo daquele do professor António Oliveira Salazar“, critica.

Henrique Machado concorda com a ideia de se tratar de um “processo salazarento”. “Esta decisão foi uma vitória do jornalismo livre, não de alguém em particular”, começa por dizer ao +M, antes de sublinhar a injustiça subjacente ao processo, “desde logo pelos métodos de investigação do Ministério Público, próprios do Estado Novo“.

Foi muito importante travar esta batalha até ao nível do Supremo Tribunal, para que o acórdão faça jurisprudência e acabe de vez com uma certa visão de alguns setores da justiça, pouco democrática, do direito à informação e à proteção das fontes. Se seguirem esta doutrina, o Estado evita depois enxovalhos junto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem“, afirma.

Segundo Carlos Rodrigues Lima, no julgamento, mesmo os inspetores da Polícia Judiciária, os procuradores do Ministério Público e os juízes de instrução que estiveram envolvidos no processo disseram que as notícias em nada prejudicavam a investigação.

Até os próprios visados – Paulo Gonçalves (do S.L. Benfica), Rui Rangel (juiz) e Fátima Galante (juíza) – “que podiam ter aproveitado aquela oportunidade para se vitimizarem e para censurarem os jornalistas, honra lhes seja feita que tiveram uma atitude completamente contrária, dizendo que não criticavam os jornalistas. Portanto, só o tribunal da Relação é que achou o contrário, numa leitura simplista – e que diria até simplória – do que é o segredo de justiça”, afirma.

Este processo nasce na cabeça de uma procuradora“, refere o jornalista, apontando ainda que a mesma chegou a colocar a PSP atrás de si e que quebrou o sigilo bancário para ter acesso à sua conta, o que o levou a apresentar há cerca de três anos uma queixa por abuso de poder.

“Já encontrei vários despachos noutros processos dessa procuradora, e quando queria fazer vigilâncias ia pedir autorização judicial a um juiz de instrução. No meu caso combinou com a PSP diretamente e a PSP prestou-se ao serviço. Sem qualquer suspeita, decidiu levantar também o sigilo bancário para me andar a ver a conta bancária. Se nós também não nos defendemos deste poder arbitrário, qualquer dia por dá cá aquela palha, colocam-nos uma escuta telefónica, por exemplo“, justifica Carlos Rodrigues Lima o que o levou a avançar com a queixa.

No entanto, a última vez que foi consultar o processo – em meados de junho deste ano – nada tinha sido feito e ainda ninguém tinha sido ouvido, “portanto parece-me que há aqui uma tentativa de abafar o caso“, considera. “Nem posso dizer que esteja em banho-maria [o processo] – porque aí ainda vai cozendo um bocadinho – aquilo está é no congelador“, diz.

A atuação da procuradora levou inclusive a então Procuradora-Geral da República (PGR), Lucília Gago, a instaurar um processo de averiguações, iniciativa saudada pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que disse ser “importante” para apurar o que se passou.

“Hoje podemos celebrar a liberdade de imprensa”, diz presidente do Sindicato dos Jornalistas

Luís Filipe Simões, presidente do Sindicato dos Jornalistas, considera que a decisão do tribunal foi um “exercício de liberdade de imprensa“, até porque se procurou punir, quando “o que os jornalistas fizeram foi aquilo que na verdade têm de fazer: escrutínio”.

Hoje podemos celebrar a liberdade de imprensa, que em Portugal ainda se verifica“, diz, recordando ainda o facto de que muitas vezes os jornalistas são condenados em Portugal, em decisões que são depois revertidas pelo Tribunal Europeu.

“Tendo como referência a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, o qual tem vindo a exigir, para a punição das condutas, que se demonstre a existência de prejuízos concretos para a investigação, o STJ considerou que essa matéria que não está provada no processo. Foi analisado o contexto em que os arguidos desenvolveram a sua conduta e a forma como as notícias foram divulgadas, tratando-se de notícias com relevante interesse público informativo”, lia-se no comunicado divulgado pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Não é por o jornalista falar em alguns passos do processo que se está a infringir o segredo de justiça, porque aí sobrepõe-se o direito e o dever de informar. Sendo de interesse público, eu parece-me legítimo até que se falem de partes do processo“, considera Luís Filipe Simões.

Concedendo que, embora tenha havido uma aproximação nos últimos tempos, “os tempos dos jornalistas não são os tempos da justiça“, o dirigente sindical alerta ainda para o facto de que “não se pode é ceder à tentação de matar o mensageiro“.

“Eu admito que a violação do segredo de justiça possa ser um problema. Mas é muito curioso que quase sempre se procura punir judicialmente o jornalismo e não se vai à fonte, a quem violou de facto o segredo de justiça. Porque quem violou não foi o jornalista que publicou, foi quem deu ao jornalista aquelas partes do processo. Ou seja, o jornalista apenas fez o seu trabalho e, neste caso, importa sublinhar que os dois jornalistas fizeram muito bem o seu trabalho“, diz Luís Filipe Simões, que considera “há um excesso em colocar tudo em segredo de justiça”, o que devia ser “a exceção”.

Nota que no processo chegou a estar também acusado Pedro Fonseca, na altura coordenador (e hoje diretor) da Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da Polícia Judiciária, por abuso de poder, violação de segredo de justiça e falsidade de testemunho. No entanto, o então juiz de instrução Carlos Alexandre decidiu não o levar a julgamento, decisão que seria depois confirmada pela Relação de Lisboa, após recurso do Ministério Público.

Acredito que estivemos mais uma vez bem. Portugal é o sétimo país no ranking de liberdade de imprensa [atrás da Noruega, Dinamarca, Suécia, Países Baixos, Finlândia e Estónia, segundo a organização Repórteres sem Fronteiras] e é bom que em Portugal surjam absolvições como esta, porque quer dizer que apesar de tudo e das dificuldades, continuamos empenhados em que haja cada vez mais uma maior liberdade de imprensa porque a saúde da democracia passa também por aí“, remata o presidente do sindicato.

Nota que no processo chegou a estar também acusado Pedro Fonseca, na altura coordenador (e hoje diretor) da Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da Polícia Judiciária, por abuso de poder, violação de segredo de justiça e falsidade de testemunho. No entanto, o então juiz de instrução Carlos Alexandre decidiu não o levar a julgamento, decisão que seria depois confirmada pela Relação de Lisboa, após recurso do Ministério Público.

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