Ana Coelho, gestora do Pessoas 2030, diz que a dinâmica do mercado de trabalho português concorre com a capacidade que as entidades formadoras têm, ou deixam de ter, de ir buscar pessoas para formar.
“O défice de qualificações demora, no mínimo, uma geração — cinco décadas — a recuperar”. Mas, “a trajetória de Portugal é absolutamente inquestionável”, defende a gestora do Pessoas 2030 no ECO dos Fundos, o podcast quinzenal do ECO sobre fundos europeus. Apesar de Portugal ter, neste momento, a geração mais qualificada de sempre, tem “alguma dificuldade em transferir esse conhecimento para a economia e tornar as empresas mais competitivas e mais produtivas”, sublinha Ana Coelho.
A situação é particularmente grave nas empresas onde, por uma “questão cultural”, os empresários portugueses “são fruto” do “défice estrutural de qualificações”. O “ciclo que se reproduz geracionalmente” leva a que as empresas continuem a “empregar mão-de-obra com baixas qualificações” e a não promover a aprendizagem ao longo da vida. Isso “acaba por criar algum constrangimento a esta passagem de conhecimento para a economia”.
Recordando que “todos estes investimentos são imateriais, levam o seu tempo a emergir dentro da economia” — “não é um procedimento automático. Não é como construir uma autoestrada” — Ana Coelho reconhece que a economia nacional continua a necessitar “de pessoas com todo o tipo de qualificações”. Mesmo dos imigrantes com baixas qualificações.
A gestora do Pessoas 2030 está preocupada com o facto de o pleno emprego que se vive em Portugal estar a afastar as pessoas da formação, sobretudo porque os empresários continuam a queixar-se que de que as competências que estão disponíveis no mercado de trabalho não são aquelas que eles necessitam.
Já somos beneficiários do Fundo Social Europeu há décadas. Não seria expectável que os resultados fossem melhores? Que não estivéssemos ainda tão distantes da média europeia depois de tantos milhões de euros investidos?
Portugal, no pós 25 de Abril, tinha um contexto socioeconómico que nos dias de hoje provavelmente já não nos recordamos. Focando-nos nas questões do défice estrutural das qualificações da população residente em Portugal, aquilo que herdámos, em 1974, foi um país em que 95% da população não tinha o ensino secundário. Teríamos 55 mil pessoas em licenciaturas, quando hoje temos cerca de 400 mil. O défice de qualificações demora, no mínimo, uma geração — cinco décadas — a recuperar. A trajetória de Portugal é absolutamente inquestionável. Basta recuar ao início da viragem do século, final da década de 90, e a taxa de abandono escolar era de 50%, hoje é de 8%. Os apoios do Fundo Social Europeu são imateriais e como tal até conseguirmos ver o reflexo desse investimento na economia e no rendimento das pessoas demora muito tempo.
O problema é que a geração com o nível de formação mais elevado de sempre, opta por emigrar e a economia do país acaba por não usufruir da qualidade dessa formação.
É verdade. Na minha opinião, Portugal tem, neste momento, a geração mais qualificada de sempre, fruto desse investimento do Orçamento nacional e do Fundo Social Europeu. Está a ter alguma dificuldade em transferir esse conhecimento para a economia e tornar as empresas mais competitivas e mais produtivas, para que estas tenham condições para pagar melhores salários. Há mesmo quem defenda que a qualificação da população portuguesa evoluiu mais depressa do que a economia. Ainda não encontrámos, ainda não chegámos ao ponto de encontro.
O que poderia acelerar esse match para que as empresas consigam dar as condições que esses licenciados, mestrados e doutorados, merecem?
Os apoios do Fundo Social Europeu, assim como de qualquer outro instrumento financeiro, do PRR, do FEDER do Orçamento nacional, não funcionam sozinhos. É preciso toda uma combinação, muito bem articulada, de um conjunto de políticas. Também é preciso tempo. A nossa economia ainda está disponível para empregar pessoas com baixas qualificações e por isso é preciso uma conjugação entre a qualificação da população e a promoção do emprego. São objetivos do Pessoas 2030 que têm de estar de mãos dadas com outros apoios mais direcionados às empresas e ao tecido produtivo, como o combate às barreiras administrativas e à carga burocrática, de que os empresários se queixam.
A nossa economia ainda está disponível para empregar pessoas com baixas qualificações.
Mas é isso que impede a inovação?
Não impede a inovação. Mas, de facto, há uma questão cultural nos empresários portugueses, porque eles próprios também são fruto do tal défice estrutural de qualificações que referi e que acaba por ter um ciclo que se reproduz geracionalmente de empresas que ainda continuam a empregar mão-de-obra com baixas qualificações, que não promovem a aprendizagem ao longo da vida, acabam por criar algum constrangimento a esta passagem de conhecimento para a economia. Todos estes investimentos que são imateriais, levam o seu tempo a emergir dentro da economia. Não é um procedimento automático. Não é como construir uma autoestrada que no dia seguinte estão lá a passar os carros.
Estamos a assistir a uma vaga enorme de imigração, com a entrada de mão-de-obra não qualificada, para fazer face às obras lançadas no âmbito do PRR, entre outras, mas também para suportar o turismo que tem vindo a bater recordes ano após ano. Estamos a assentar novamente o desenvolvimento nas baixas qualificações e no consumo privado? Não era este o modelo económico que os fundos estruturais deveriam estar a alavancar.
Em primeiro lugar, o conceito de vaga enorme de imigração tem de ser colocado em perspetiva. Se olharmos para os dados de sustentabilidade demográfica do país, então a resposta é não. Não é uma vaga enorme, ela é necessária. Portugal tem tido saldos migratórios positivos, mas a tendência aponta para um decréscimo nos próximos anos. Portugal vai enfrentar, já é determinístico, algum problema do ponto de vista das suas finanças públicas. A proporção entre a população ativa e idosa vai encontrar um novo ponto de equilíbrio. Se hoje temos para três trabalhadores, um pensionista, perspetiva-se que, em 30 anos, tenhamos para um pensionista 1,5 trabalhadores. Vai haver um redirecionamento do nosso orçamento para as questões relacionadas com a saúde, com os cuidados das pessoas mais idosas.
Já estamos a assistir a isso com o aumento dos encargos do SNS.
Os clientes do SNS são hoje muitos mais e durante muito mais tempo. Portugal tem a maior esperança média de vida da União Europeia. No fundo, somos um país de contrastes. Temos de enfrentar este problema da demografia. E como se enfrenta? Aumentando a natalidade, algo que não acontece com rapidez, promovendo o envelhecimento ativo. Cada vez as pessoas conseguem prolongar durante mais tempo a sua vida ativa. Os imigrantes são bem-vindos. Necessitamos deles para compor a nossa população ativa. Também se estima que em 30 anos seja metade daquilo que é hoje. E sim, de facto continuamos a necessitar, como em qualquer estrutura económica, de pessoas com todo o tipo de qualificações. E sim, temos de nos tornar um país mais atrativo. Não temos só que produzir talento e retê-lo, não deixar sair, mas também ter capacidade de atrair talentos. Tudo tem a ver com tudo. As nossas empresas se se tornarem mais produtivas também vão ter capacidade de pagar melhores salários e atrair uma imigração mais qualificada.
Tem havido um aumento dos despedimentos coletivos, sobretudo na área da indústria. Apesar de o mercado de trabalho estar em máximos históricos, no caso da indústria, isto pode denunciar alguns sinais de preocupação. Os empresários, neste setor, têm aproveitado o momento para apostar mais na formação e dar novas competências à mão-de-obra?
Os despedimentos coletivos na área da indústria são uma consequência desta nova ordem internacional.
Do abrandamento da economia europeia.
Tem havido algum desvio para economias mais a Oriente e até o próprio relatório Draghi foca imenso este aspeto da Europa ter de se focar na sua indústria e garantir alguma da sua autonomia. Vivemos tempos diferentes do ponto de vista do contexto internacional geopolítico. Vejo não com gosto, como é óbvio, mas como sendo de alguma forma expectável alguns despedimentos coletivos na área da indústria e a sua deslocalização. É algo que, acionando todas as medidas, devemos travar e preservar as nossas empresas.
Retomando a questão, os empresários têm aproveitado para apostar na formação?
Neste momento vamos começar a enfrentar um abrandamento do crescimento económico, mas o mercado de trabalho está a demonstrar bastante resiliência. Atingimos a maior taxa de emprego histórica em 2023. 78% da população em idade ativa está empregada e o desemprego é de 6,5%. Do ponto de vista económico, o pleno emprego é considerado abaixo dos 3%, mas 6,5% significa que a Portugal está em pleno emprego. O mercado de trabalho português tem bastante resiliência. As políticas ativas de emprego dão algum apoio a este contexto. Uma das minhas grandes preocupações é: se temos a população toda empregada, se temos mais de 40% da população ativa sem ensino secundário, se temos os empresários a queixarem-se de que as competências que estão disponíveis no mercado de trabalho não são aquelas que eles necessitam, de que forma é que conseguimos puxar as pessoas para a formação, não só para a sua requalificação, mas para uma aprendizagem ao longo da vida. É um esforço grande por parte das empresas. Sabemos que já muitas empresas culturalmente promovem e patrocinam esta aprendizagem ao longo da vida. Outras nem tanto.
Não tenho dados sobre o que me pergunta, mas temos um conjunto de medidas, nomeadamente das formações modulares certificadas, que são unidades de curta duração, em que há bastante adesão, não só para formar desempregados mas também empregados. Mas, neste momento, diria que a própria dinâmica do mercado de trabalho português concorre com essa capacidade que as entidades formadoras têm, ou deixam de ter, de ir buscar pessoas para a formação, porque as pessoas estão empregadas. Na troika, quando as taxas de desemprego foram elevadíssimas, chegámos a ter mais de 700 mil desempregados, neste momento não sei se chega a 300 mil, foi uma altura de muita formação porque as pessoas estavam desempregadas.
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“Défice estrutural de qualificações dos empresários cria constrangimentos”
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