“País tem cometido um erro ao cingir o investimento público às contrapartidas aos fundos europeus”

Fundos europeus tradicionais encerram uma armadilha já que apenas apoiam PME e Portugal precisa de grandes empresas, defende ex-ministro da Economia, António Costa Silva.

O ex-ministro da Economia, António Costa Silva, considera que Portugal “tem cometido um erro, ao longo do tempo”, ao cingir “o investimento público às contrapartidas aos fundos europeus”. “Quem fixa as metas e as prioridades dos fundos europeus é basicamente a Comissão Europeia”, lamenta. Uma questão que se agravará se pós-2027 aos fundos vier a ser atribuída a mesma lógica do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).

Mas os fundos tradicionais também encerram uma armadilha já que apenas apoiam PME e Portugal precisa de grandes empresas, defende Costa Silva ao ECO dos Fundos, o podcast quinzenal do ECO. “A nível do país, temos de desenvolver instrumentos específicos se queremos apoiar as nossas próprias prioridades”, diz.

Costa Silva critica o “bruá e frenesim” criados em torno da execução dos fundos europeus e ironiza o facto de “na apresentação do Orçamento do Estado, os números de execução do PRR foram exatamente” os mesmos deixados pelo Executivo anterior. “Espero que tenha avançado alguma coisa”, atira. Portugal já submeteu um quinto pedido de pagamento a Bruxelas, mas ainda aguarda a decisão do executivo comunitário.

Relativamente à Operação Maestro, que investiga o alegado desvio de 30 milhões de euros de fundos europeus por parte de Manuel Serrão, Costa Silva diz “tudo aquilo que o Estado puder proporcionar em termos de meios, de organismos e tecnologias para se desenvolver o combate à corrupção é fulcral”. Até porque “os homens não são anjos” e a “corrupção é inerente à natureza humana”.

 

Como encara a opção do Executivo de dar tanta centralidade aos fundos europeus e aos atrasos na execução?

Relativamente à execução dos fundos europeus, é importante termos uma ideia rigorosa sobre tudo o que se passou e que se está a passar. No que concerne ao PRR e aos 22,2 mil milhões, quando o 23.º Governo constitucional terminou, em março deste ano, a execução era exatamente de 23% nas metas e nos marcos e de 24% nos pagamentos. Quer dizer que estavam cerca de cinco mil milhões de euros já nos beneficiários finais e, em trânsito, 1,6 mil milhões. No conjunto dá cerca de um terço. É curioso porque, na apresentação do Orçamento do Estado, os números de execução do PRR que foram apresentados são exatamente esses. Espero que tenha avançado alguma coisa. Aqueles números foi exatamente o que deixámos. Estão em absoluta linha com aquilo que é a auditoria do Tribunal de Contas Europeu que foi comunicada este ano. Portugal está acima da média europeia em termos da execução. Portugal é um dos nove países membros que apresentou 100% dos pedidos de desembolsos que estavam previstos naquele prazo. Depois do bruá e do frenesim sobre a execução dos fundos europeus, e particularmente do PRR, a situação está controlada.

Não há razão de preocupação? Se as coisas forem prosseguindo da forma como estavam planeadas, a execução aparecerá?

A execução aparecerá. O país nunca falhou a execução de fundos europeus, tem um escol na Administração Pública, funcionários muito competentes, muito dedicados. Os organismos estão, desse ponto de vista, apetrechados. Há outros em que a situação da Administração Pública mais difícil e complexa, depauperados em termos de recursos humanos. Mas o que concerne aos fundos europeus, o país sempre executou. O que é novo? Estamos a fechar o PT2020, a desenvolver o PRR e a lançar o PT2030. Sobre o PT2020, dos 26.800 milhões, em dezembro do ano passado, tínhamos executado 26 mil milhões — 97% de execução. Dessa execução já temos hoje indicadores de avaliação do impacto do PT2020 na economia portuguesa: é muito significativo. Durante a execução, o impacto é de um crescimento de 1,3% no PIB, até 20 anos subsequentes ao fim do programa, o impacto é de 1,6% e em cada euro que foi investido há três euros que contribuem para o crescimento da economia portuguesa. Defendo que temos de ter um escrutínio completo, uma avaliação e uma monitorização para redesenhar os programas e os fundos europeus e direcioná-los.

Mas respondendo claramente à pergunta, o país tem cometido um erro, ao longo do tempo, que me preocupa muito. Não é deste Governo nem do anterior. É de todos. Em Portugal, o investimento público está cingido às contrapartidas aos fundos europeus. Quem fixa as metas e as prioridades dos fundos europeus é basicamente a Comissão Europeia, depois em negociação com os Estados nacionais. Mas estamos a preterir, em termos do Estado português e da sua soberania, de desenvolver um investimento público autónomo e estratégico. O país tem de ter condições de recuperar isso, porque se não recupera, vai ser extremamente difícil.

No quadro financeiro plurianual pós-2027 faz-se a discussão se o modelo a seguir deve ser idêntico ao do PRR e não como até agora com os fundos de coesão. Isso iria ao arrepio do que está a dizer? Seria entregar ainda mais a Bruxelas a direção das prioridades nacionais?

Sim, isso tem um impacto muito grande no desenvolvimento do país. Uma das questões fulcrais é os fundos europeus convencionais, não o PRR que é diferente, da forma como estão desenhados é apoiar pequenas e médias empresas (isso vem da UE). Para nós, isto é letal. Precisamos de médias e de grandes empresas. As grandes empresas em Portugal representam 0,2% do tecido empresarial. Falei muito disso no Governo anterior. E a luta! no fim conseguimos desenvolver dois grandes pacotes: um de 150 milhões de euros, que foi aprovado pela resolução do Conselho de Ministros em abril de 2023, para a Aicep apoiar as grandes empresas portuguesas. E depois começámos a negociar com a União Europeia, no quadro do acordo temporário de crise, que foi desenhado depois da guerra da Ucrânia, para termos mil milhões de euros para investir na atração de grandes projetos internacionais. Foi aprovado pelo Governo anterior, negociado com a Comissão Europeia, que agora recentemente deu a sua aprovação oficial. Mas temos de ter muita atenção: os projetos europeus são excelentes, muito importantes para Portugal, modernizaram a economia portuguesa. Contribuíram também para melhorar a governança pública no país por causa da transparência, por exigir planos a médio e longo prazos. Mas trouxeram grandes inibições, e esta é uma delas. Se só seguirmos a lógica dos fundos europeus, só conseguimos apoiar pequenas e médias empresas. Elas devem ser apoiadas. Sempre defendi isso, mas temos de conjugar isso com o apoio às médias e às grandes empresas. E por isso, quando era ministro da Economia nos Conselhos de Competitividade, lancei um debate para, a nível da União Europeia, se redefinir o que é uma PME. PME está hoje definido até 250 trabalhadores. Era para redefinir isso, aumentar substancialmente este número para permitir apoiar outras empresas. Mas isso é no quadro europeu. Mas, a nível do país, temos de desenvolver instrumentos específicos se queremos apoiar as nossas próprias prioridades.

Como é que encara a descoberta, que resultou na Operação Maestro, da alegada utilização indevida por parte de Manuel Serrão, de menos de 30 milhões de euros em fundos europeus?

Desde que a democracia grega que há a discussão sobre a corrupção. A corrupção é inerente à natureza humana. E, como dizia um dos Presidentes americanos, um dos pais fundadores, o James Madison, os homens não são anjos. É por isso que precisamos de instituições e de controlar completamente aquilo que se processa. Para mim, todas essas descobertas são importantes. Significam que o sistema está a atuar.

Está a funcionar.

O Ministério Público está a atuar, que as pessoas que prevaricam vão ser sancionadas. E temos de ter uma certeza de que tudo isso é assim. Tudo aquilo que o Estado puder proporcionar em termos de meios, de organismos e tecnologias para se desenvolver o combate à corrupção é fulcral. Temos um problema de confiança nas nossas democracias, entre os governantes e os governados. E depois todos esses casos não ajudam absolutamente nada. Temos de restabelecer essa confiança. Qualquer indicação de corrupção é instruir as autoridades, fazer a investigação e sancionar os prevaricadores. Queria só que neste processo se salvaguardasse sempre o bom nome das pessoas até serem julgadas em tribunal. As questões das fugas ao segredo de Justiça são muito nocivas. Temos de preservar o bom nome das pessoas, até porque às vezes são injustamente acusadas. Olhe o Dr. Miguel Macedo, por exemplo, ou o Dr. Azeredo Lopes, foram ministros, foram acusados e no fim foram completamente ilibados. Só quando são ilibados já têm o julgamento na praça pública e as famílias destruídas e as vidas afetadas. Isso não pode acontecer. Mas sempre que há esses indícios temos de dar todas as condições para as autoridades atuarem.

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