A caixa negra da publicidade
Cabe aos anunciantes o dever de escolherem conscientemente onde investir, valorizando o impacto social tanto quanto a eficácia. Sem uma imprensa livre e robusta, a democracia permanecerá incompleta.
É difícil apontar o momento exato em que o equilíbrio se perdeu, mas é inegável que o negócio da publicidade sofreu, nos últimos anos, uma transformação tão radical quanto preocupante. As plataformas digitais, com um domínio quase absoluto, mudaram e moldaram as novas regras do jogo, impondo-se como protagonistas ubíquos no universo publicitário. Perguntemo-nos: o que pode fazer hoje um grupo de comunicação social, um jornal ou uma rádio perante esses gigantes? Têm um poder esmagador, hegemónico, que devia levantar questões fundamentais sobre a qualidade, a transparência e o impacto das escolhas publicitárias na sociedade.
Apesar de iniciativas pontuais de apoio aos media, cujo exemplo prático é o esforço que o governo português está a fazer para um plano de apoio aos media portugueses, a realidade é dura: as contas dos grupos de comunicação social estão em estado crítico, enquanto o valor bolsista das plataformas continua a crescer vertiginosamente. Esta nova dinâmica transformou o mercado publicitário numa “caixa negra”, onde a tomada de decisões está refém de algoritmos, métricas de eficácia inquestionáveis e um controlo opaco exercido por poucos intervenientes.
Os anunciantes, por sua vez, parecem ter perdido grande parte da sua capacidade de escolha qualitativa sobre onde investir. A dependência dos dados fornecidos por estas plataformas, sem alternativas globais ou locais confiáveis, forçou-os a aceitar métricas predefinidas, com pouca ou nenhuma margem para auditorias independentes. Plataformas locais que tentam oferecer alternativas existem, quer em Portugal quer no resto do mundo, mas os seus esforços têm-se revelado insuficientes face ao peso das multinacionais.
Este panorama coloca os anunciantes numa posição paradoxal. Por um lado, atraídos por promessas de eficácia e resultados rápidos, cedem ao apelo das plataformas dominantes; por outro, tornam-se reféns de sistemas fechados, onde o controlo da informação está centralizado. No fim, acabam por confiar cegamente nos dados apresentados, sem qualquer garantia de transparência ou de integridade.
Mais preocupante ainda é o impacto desta dinâmica na sociedade. Quando a eficácia se torna o único critério de decisão, valores como a qualidade do conteúdo, a integridade jornalística e o impacto social positivo são relegados para segundo plano. Os anunciantes, ao priorizarem exclusivamente o retorno financeiro imediato, desinvestem no ecossistema mediático e abdicam da sua responsabilidade de apoiar a diversidade e a sustentabilidade informativa.
Eis a questão essencial: estaremos dispostos a sacrificar a qualidade e a pluralidade da informação em nome da eficácia? O domínio destas plataformas não só centraliza o poder, como também homogeneíza o discurso, limitando a diversidade de perspetivas, e torna o mundo mais maniqueísta e dicotómico. A falta de moderados na política e o exemplo da polarização de voto nos Estados Unidos são consequências diretas deste novo modelo. Ao concentrarem os investimentos numa única entidade, os anunciantes comprometem a sobrevivência de meios independentes, pilares fundamentais de uma sociedade crítica e informada.
Os legisladores, embora atentos, têm agido de forma lenta e cautelosa. Nos Estados Unidos, cresce a pressão sobre gigantes como o Google, e a Comissão Europeia já havia imposto uma multa de 1,49 mil milhões de euros à empresa em 2019 por práticas abusivas na publicidade online. No entanto, em 2024, o Tribunal Geral da União Europeia anulou essa decisão, alegando erros na avaliação das cláusulas contratuais que sustentavam a acusação. Este episódio evidencia a complexidade do escrutínio regulatório sobre as gigantes tecnológicas e a dificuldade em responsabilizá-las pelas suas práticas.
Ainda assim, a questão central permanece: estaremos perante um monopólio de facto, onde o controlo sobre ambos os lados do mercado publicitário e a definição de preços em tempo real representam claros conflitos de interesses?
É urgente que anunciantes e profissionais de marketing reavaliem as suas estratégias, resgatando o valor das escolhas qualitativas. Investir em meios que promovam diversidade, integridade e qualidade informativa não é um luxo, mas uma necessidade para fortalecer o tecido social e democrático.
A pressão para que as plataformas adotem maior transparência e permitam auditorias independentes nos dados fornecidos deve ser redobrada. Só assim será possível garantir métricas de eficácia justas, verificáveis e verdadeiramente representativas.
A qualidade da comunicação social não pode ser delegada, unicamente, a algoritmos ou sistemas automatizados. Cabe aos anunciantes a responsabilidade e o dever de escolherem conscientemente onde investir, valorizando o impacto social tanto quanto a eficácia. A publicidade não pode ser apenas uma ferramenta de venda; deve também refletir valores, promover a diversidade e contribuir para uma sociedade mais informada e forte. Sem uma imprensa livre e robusta, a democracia permanecerá sempre incompleta.
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