Copy Nothing and make Real Magic? (Ajudai-nos, São Bernardino de Sena)

  • José Godinho Marques
  • 11:57

Ajudai-nos, São Bernardino. Que as marcas voltem a fazer “Delete” no “Ordinary”, e que a “Real Magic” regresse. Com sorte, e se Deus quiser, para o ano que vem o “woke” deixou de ser moda. Haja fé.

Acabei de comprar um terço para rezar a todas as divindades, para que neste Natal, além de paz, pão para o povo e liberdade, tragam o mundo de volta. Pelo menos, o da publicidade como sempre amei e admirei. Disseram-me para orar muito a um tal de São Bernardino de Sena — diz que é o padroeiro dos publicitários.

Este carregava sempre consigo o sinal JSH – Jesus, Salvador dos homens — e orientava os fiéis para que recordassem sempre que Jesus veio para salvá-los. Trabalhou em dupla com um taquígrafo — este não sendo um copywriter, era um tipo que transcrevia muito rapidamente os sermões de Bernardino. Long copy, pois então, daquele à la Neil French para a Dove ou a Beck’s Bier.

A pouco e pouco, a marca Jesus Cristo foi sendo a mais bem criada de sempre, com equipas de marketing incansáveis e um orçamento de produção sem limites, feito de talha dourada, pedras preciosas, mármores de Carrara e marfim e sedas de sítios improváveis. E chegou aos quatro cantos do mundo, sendo ainda veiculado em prime time por padres e afins.

E comemoramos este nascimento de Jesus a 25 de dezembro, todos os anos, com a ajuda do Pai Natal. Esse senhor pesado, barbudo, de pele reluzente e voz rouca, sempre bem apessoado em veludo vermelho, que estimula os maiores sonhos de consumo que vivem connosco desde sempre.

Sim, o Pai Natal é uma grande ajuda para o menino Jesus, para que as pessoas mantenham o espírito da bondade e da partilha sempre cintilante. Ficamos todos muito mais presentes quando oferecemos presentes, e não tem que ser necessariamente ouro, incenso e mirra. Pode muito bem ser uma lata de Coca-Cola ou um Jaguar Type 00, you name it.

Teria eu uns 8 anos, e já me assumia como petrolhead. Gostava muito do cheiro intenso a gasolina do habitáculo do VW Carocha do meu pai. Debaixo da mesa da humilde sala dos meus avós, sentava-me e dava asas à imaginação, a sonhar que estava no interior de um potente corcel de metal.

Com uma grande tampa de panela (avó Ermelinda era uma faustosa cozinheira), imaginava que curvava a fundo como se estivesse a descer a Rampa da Pena, em modo Ayrton Sena. Antes do Natal de ’78, os meus pais fizeram uma escapadinha romântica e largaram-me na casa dos avós – coisa que eu adorava.

No regresso, trouxeram-me em modo de compensação pela ausência, um presente que guardo na memória como se fosse hoje: um carrinho da Matchbox. Era um Jaguar E-Type azul escuro, lindo de morrer, o que me estimulou a continuar a sonhar e a sonhar mais e mais com estes objetos de desejo que se levam para o asfalto.

Já vivi o suficiente para acompanhar boa parte da narrativa temporal da Jaguar. Com um legado histórico fora do comum, a marca começa a dar os seus tiros no pé debaixo da gestão Ford, com S-Types e X-Types que mancharam a reputação do construtor à escala global. Em bom tempo, foram comprados pela Tata Motors, criando-se a Jaguar Land Rover (esta última a fazer magia na criação revivalista de todos os seus modelos mais icónicos).

Quarenta e tal anos depois, pouco antes do natal, a Jaguar lança uma campanha cor-de-rosa que nos diz “Copy Nothing”, para anunciar a sua nova forma de estar “Woke” (desculpem), com concept cars que dificilmente rodariam em ruas estreitas e empedradas de Birmingham ou Sintra.

A sensação que fica, é que os futuros clientes irão conduzir um macaron e não um mega carrão. Em vez de entrarem num stand old school da Jaguar, com aquela mescla generosa de aromas a couro e borracha para saírem com um carro de cor imponente que mete o alcatrão em sentido, sairão com uma torradeira da Smeg com rodas – bem sei que os concept cars são uma hipérbole daquilo que vai estar disponível no mercado, mas a forma de evangelização que foi feita, através do “Delete Ordinary” e “Copy Nothing” e cores garridas de bebé com inspiração numa parada Gay Pride, não podia ser mais frágil.

Mas era quase Natal, ninguém levaria a mal. Type 00 fez-me sentido, sendo que está um zero à esquerda do zero. Consigo certamente ver a inspiração do E-Type num exercício de estilização, mas o entourage conceptual que se cria em torno de um lançamento pode muito bem arruinar a reputação de um produto. A não ser que o público seja uma categoria weirdo, como super influencers de milhões de visualizações ou novos crypto-milionários que gostam de viver com declarações exuberantes do que está para vir.

E depois do “Copy Nothing”, chega o “Real Magic” da Coca-Cola. Como é que se assina uma campanha de Natal com Real Magic, tendo esta sido inteiramente feita com Inteligência Artificial, anunciando “Holidays are coming”?

Fiquei estupefacto com o grau estupefaciente da campanha, que me deixou com as sinapses entorpecidas, mas fiquei ciente de uma coisa: a IA ainda está muito longe de parecer real e despertar verdadeiras emoções. As pessoas que observam o Pai natal a passar com o seu camião, parecem saídas de um programa de narcóticos anónimos, ou de uma ala hospitalar dedicada ao AVC.

Não percebo o que se passou com a cabeça da liderança de marketing do gigante norte americano, mas é aqui que me recordo das palavras do David Ogilvy: “If each of us hires people who are smaller than we are, we shall become a company of dwarfs. But if each of us hires people who are bigger than we are, we shall become a company of giants.”

Foi o que foi. Vamos lá experimentar fazer uma campanha de Natal com estúdios de IA, quando a IA está ainda a dar os primeiros passos, para comprovar que estamos à frente no nosso tempo, e blah, blah, blah.

Podiam ter continuado com as agências de sempre, os bons gigantes, e a Real Magic que sempre advogaram pelo Natal teria acontecido. A Coca-Cola não vende smartphones. Nem tecnologia. Vende felicidade, e a felicidade não se consegue plasmar em bonecos mal feitos. Esta ânsia de nos mostrarmos à frente no tempo sem preparação para tal tem um efeito daninho e danoso, quer queiramos, quer não. Dane-se a coerência, o brand equity conceptual da marca, tudo. É de bradar aos céus.

Vou voltar a rezar ao tal de São Bernardino de Sena para que o meu mundo volte. Esse tal mundo da publicidade bonita, com propósito e significado. Vou rezar para que tudo isto tenha sido apenas um grande e dispendioso stunt de marketing, e que no fim as duas marcas venham dizer “estávamos a brincar, queridos consumidores — isto foi só para mostrar ao mundo que as coisas feitas sem alma ou carregadas de espírito woke valem muito pouco.

Vamos retomar o nosso caminho assente na nossa heritage, prometemos!”. Vou rezar e rezar no meu cantinho para que assim seja, enquanto acordo do pesadelo de estar a beber uma Coca-Cola num carro da Barbie, com a minha cara transformada numa espécie de Ken baixote e moreno.

Ajudai-nos, São Bernardino. Que as marcas voltem a fazer “Delete” no “Ordinary”, e que a “Real Magic” regresse. Com sorte, e se Deus quiser, para o ano que vem o “woke” deixou de ser moda. Haja fé.

Ámen.

  • José Godinho Marques
  • Creative partner na Fønix - Ideas from Scratch

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