As laranjas do Algarve já foram da Índia
O dr. Ventura e os seus amigos bem podem berrar e gesticular contra os estrangeiros, mas ninguém escapa ao seu destino: a História é feita de laranjas à procura do solo e clima ideal.
A laranja do Algarve é uma das coisas boas de Portugal — e já é assim há muitos séculos. São doces, saborosas, com a consistência certa. Entre as variedades de laranjas da região, a Newhall, a Navelina e a Lane Late são as mais produzidas. São colhidas em diferentes alturas, o que vai garantindo fruta fresca e suculenta o ano inteiro. Costumo comprá-las em Silves, algures na EN 124, mesmo ao lado da “Casa de Pasto Norinha”, e recomendo.
A laranja nasceu na Ásia. O seu cultivo ter-se-á iniciado há cerca de 7000 anos, na China. Os romanos foram provavelmente os primeiros europeus a entrar em contacto com a laranja, através do comércio com mercadores persas e do reino de Aksum. Os primeiros pomares terão surgido no Norte de África, desde a Líbia até Marrocos, no século I D.C., e eram geralmente propriedade de cidadãos romanos.
No século XI, durante o Califado Islâmico, o fruto voltou à Europa, com sementes trazidas da Pérsia. Mas a laranja doce só foi introduzida na Europa no século XVI por mercadores portugueses que a trouxeram da Índia, espalhando-se rapidamente por toda a Europa do Sul. Em vários países passou a ser chamada de “Portuguesa”, como “Portokali” em grego, “Portakal” em turco, “Portocala” em romeno e “Portogallo” em italiano (informação recolhida no website da câmara de Silves).
A História é feita de gente à procura de vida melhor, segurança, algum futuro. E a história da fuga da pobreza é a história das migrações. Descontando razões pessoais, degredo, missões religiosas ou políticas, as pessoas quando se movem fogem da pobreza. E estão dispostos a morrer por isso.
As primeiras migrações remontam à pré-história, quando os homo sapiens saíram de África há cerca de 60.000 anos, espalhando-se pela Europa e Ásia. Já nessas alturas as mudanças climáticas influenciaram tais demandas.
Durante a Idade Média, as invasões bárbaras, como as dos Hunos e dos Visigodos, mudaram o mapa da Europa. As Cruzadas também levaram muitos europeus ao Oriente. A partir do século XV, europeus migraram em massa para as Américas, África e Ásia, em busca de ouro e outras riquezas.
O século XIX foi marcado por grandes fluxos migratórios, especialmente da Europa, para a América do Norte: sempre em fuga da pobreza. No século XX, as guerras mundiais e os conflitos políticos levaram a migrações em massa, como as dos refugiados da Segunda Guerra Mundial, dos deslocados durante a Guerra Fria ou os da extinta URSS.
Nos dias que correm haverá cerca de 130 milhões de pessoas em fuga da pobreza num percurso avassalador Sul-Norte e Leste-Oeste. O dr. Ventura e os seus amigos bem podem berrar e gesticular contra os estrangeiros, mas ninguém escapa ao seu destino: a História é feita de laranjas à procura do solo e clima ideal para se reproduzirem, como é feita de pessoas que querem escapar à fome, à miséria e à indignidade.
No movimento pendular do tempo, as riquezas do Norte são, agora, o ouro que procurámos no Brasil ou em África. A evangelização cristã foi trocada pela presença árabe, muçulmana ou hindu nas nossas cidades.
Em 2020, Portugal e Itália tinham uma taxa de natalidade de cerca de oito nascimentos por mil habitantes. No mundo árabe, as taxas de natalidade são bem mais altas. Na Arábia Saudita, em 2022, a taxa era de 16,9 por mil. No Iémen, cerca de 30 por mil.
Ninguém consegue antecipar o que aí vem, mas sabemos que sem pessoas o nosso modelo económico não tem futuro — e que as classes trabalhadoras e produtivas no Ocidente rico estão no limite do esforço fiscal e vão deixar de querer ouvir falar de solidariedade intergeracional, como já não querem ouvir falar de mais imigrantes ou da redução de qualidade dos serviços públicos.
A pobreza, a demografia e a cegueira trarão caos, mais medo e xenofobia.
A verdadeira insegurança que vivemos não decorre tanto do aumento da criminalidade, mas da incerteza. E quem não sente futuro agarra-se a tudo. A tudo.
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