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Cenas de uma novela espúria
O Almirante é um como um OVNI, mas não voa. Já a cáfila que começa a juntar-se à sua volta aspira a voos altos e assusta. É preciso perceber para onde a cáfila pretende levar o homem.
1. Uma destas noites a SIC estreou uma novela portuguesa cuja história gira à volta de disputas familiares, uma mulher desesperada, uma herança inesperada, passando-se tudo isto entre paisagens alentejanas, cavalos, homens maus, bons e outras personagens assim-assim.
Não tenho memória de ver uma “novela”, para além de “Succession”: Logan Roy e a sua curiosa família entretiveram bem ao longo de várias temporadas. Deu-se a feliz circunstância, contudo, de ter uma máquina das imagens ligada naquela noite de estreia de “A herança”. Estávamos em casa — uma casa que vive bem há 15 anos sem televisão social — e fomos deixando a empolgante história tomar conta da nossa atenção enquanto cada um fazia o que tinha a fazer no respetivo computador. Parecíamos uma família normal e funcional, com a TV no centro da vida, depois de um jantar frugal e de um chá de camomila. Idílico.
Vim a saber uns dias depois que uma amiga da minha filha também passou pela mesma experiência, ao que a minha filha, a Maria, respondeu: “Não quero perder o próximo episódio, prá semana”.
A Maria é excelente, estudou umas coisas e obteve grau, já trabalhou um ano numa multinacional, sabe mais do que eu sobre a história do conflito entre palestinianos e israelitas, filosofia política ou “luxury brands”, mas não sabia que as novelas televisivas passam todos os dias. Agora já sabe.
Este pequeno e íntimo episódio familiar diz muito sobre o modo de consumo de televisão pelos mais novos — e alguns velhos, como eu. A emergência dos smartphones, do streaming e das redes sociais tem alterado o modelo económico dos grupos de media e muito ainda está para vir. O velho televisor transformou-se no ecrã e tudo pode ser ecrã. Programação, contraprogramação ou prime time são conceitos, entre muitos outros, que perderam o sentido que lhes demos, mas como somos conservadores e cada vez menos aptos para compreender a mudança (ou querer compreendê-la) ficamos um pouco, digamos, distantes da realidade “deles”, “eles”, os outros, os tais que não sabiam que a novela passa a toda a hora.
Pode um homem combater a sua própria obsolescência?
2. O estranho caso dos apoiantes de Gouveia Melo é quase tão misterioso como o OVNI avistado em Barcelos, em 2023. Um homem quando saía de um café viu “várias luzes no céu com arestas nas pontas, de cor verde, amarela, azul e vermelha”. O dito homem esteve num café e saiu a ver estrelas, já passava das 11 horas da noite — já vi desculpas piores.
O almirante é também um pouco como o OVNI de Barcelos, mas não voa. Já a cáfila que começa a juntar-se à sua volta aspira a voos altos e assusta. É preciso perceber para onde a cáfila pretende levar o homem. Não precisamos de messias apoiados por organismos misteriosos, infelizes da vida, pequenos criminosos sem sentença, abutres, entre outras personagens do zoo em que o movimento se transformou.
Mas precisamos de saber ao certo o que o candidato (suposto) faria com uma maioria presidencial. O PRD é um fantasma que paira e a sua história não deixou boa memória. Querer eleger um presidente para escavacar o sistema de partidos e introduzir um movimento populista que junta os maltrapilhos, os deserdados e uns tantos vigaristas ideológicos com o objetivo de enganar o Almirante (e os que se sentem cansados do que temos) é perigoso. Muito perigoso.
No jogo das perceções, admito que Gouveia Melo seja bem-intencionado, um “humanista”, nas palavras experimentadas do mais famoso gourmet de Oeiras, Isaltino Morais, mas tenho muitas dúvidas sobre o séquito que se promove e sobre as motivações que os une. Será traído pelas hienas e coiotes esfomeados. Pobre Almirante. Pobres de nós.
3. Álcool, sexo e viagens: o que se pode querer mais? Há uma espécie de maldição no partido puro e imaculado. Mas, no meio destas desgraças, há um homem esperto e inteligente chamado André Ventura.
Ventura sabe muito de comunicação e sabe muito de política. Não desarma, ataca quando outros se calariam, não deixa a bola à deriva no meio-campo. A banalização do escândalo no ex-partido perfeito vai minando o partido (e alguns dos seus melhores quadros, obrigados à demissão), mas reforça o santo. E como o partido é o santo, teremos partido e teremos santo.
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