
Entre o “nunca pior” e o “façam favor de ser otimistas”
Infelizmente, vemos hoje no cenário internacional e no contexto geopolítico quem repita, vezes sem conta, ‘danças-da-chuva’ cujo único objetivo parece ser o de converter nuvens em tempestade.
Depois de quatro anos atípicos consecutivos, 2024 foi o primeiro de um regresso a uma certa normalidade no mercado do chamado grande consumo.
Depois de um início de década marcado pelo espetro da pandemia, seguiram-se dois anos de hiperinflação que como, por estes dias, referia um estudo divulgado pelo Banco Central Europeu, deixou ‘cicatrizes’ nos consumidores por toda a Europa, com uma diferença bastante acentuada entre uma efetiva recuperação do poder de compra em 2024 e uma perceção que parece ainda não ter chegado ao cérebro e à carteira de muitas famílias. E Portugal não constitui exceção, apesar de indicadores económicos razoavelmente otimistas.
O ano terminado há poucas semanas deixou Portugal numa posição razoavelmente positiva, com um crescimento do Produto Interno Bruto bastante acima do que ocorreu nos restantes países da Zona Euro, especialmente os situados a leste dos Pireneus, onde se vive uma conjuntura económica (e política) muito difícil e complexa, uma mistura de uma quase ingovernabilidade em países-chave com uma economia a viver um muito mau momento, com o esgotamento de modelos seguidos durante décadas e com o setor automóvel a gerar um efeito multiplicador muito negativo, que motiva um estranho estado de quase depressão coletiva.
Portugal (e Espanha) vivem hoje num aparente contraciclo, falando-se agora frequentemente no ‘oásis ibérico’, misturando uma estranha (mas real) estabilidade governativa (quem diria?), com um maior afastamento do conflito a leste e um modelo económico um pouco menos dependente seja de setores que vivem momentos de profunda transformação, seja do fornecimento energético proveniente da Rússia.
Contudo, pelo menos no caso português, sendo estes países europeus (França, Alemanha, Reino Unido, Bélgica, Holanda, Áustria, Polónia,…) o mercado de destino maioritário das exportações nacionais e também o mercado de origem prioritário nas emissões de turismo para o nosso país, há um claro efeito de arrastamento e de contágio que, mais cedo ou mais tarde, nos tenderá a atingir.
Ainda assim, o presente apresenta perspetivas positivas e empurra os índices de confiança em Portugal, um país onde esses índices são tradicionalmente baixos.
Estamos, pois, a meio caminho entre o nosso atávico “nunca pior” e um quase envergonhado “façam o favor de ser (um bocadinho) otimistas”.
Quando entramos em 2024, os sinais positivos estavam já no horizonte de um setor, como o do grande consumo, cuja performance tem uma relação direta com o poder de compra dos cidadãos. Uma inflação muito mais controlada, fazia antecipar ganhos salariais reais. Um orçamento disponível, para muitas famílias, beneficiando da menor fiscalidade em sede de IRS ou de adições geradas por complementos de pensões. E, num país com elevados níveis de endividamento bancário (especialmente associado ao crédito à habitação), pelo impacto que seria gerado pela redução das taxas de juro. Há um ano, o grande ponto de interrogação era exatamente esse: quando chegaria essa redução das taxas de referência e qual seria a dimensão dessa descida.
E, na verdade, seguramente não apenas pela redução das taxas de juro, mas por certo também empurrado por essa descida, o mercado acabou por mostrar sinais bastante mais positivos na segunda metade do ano transato, com uma evolução ligeiramente positiva dos volumes comprados pelos consumidores, por uma evolução positiva das vendas no retalho alimentar acompanhada também de notícias positivas do lado do consumo fora de casa.
Do ângulo das marcas, a segunda metade de 2024 mostra o estancamento de uma ‘hemorragia’ que se vinha verificando desde há quatro anos com uma acelerada transferência de vendas para as Marcas dos Distribuidores.
Está a recuperar-se efetivamente terreno em relação às marcas próprias dos supermercados? Ainda não… mas parou-se a perda constante de espaço que vinha ocorrendo desde 2020.
E esse estancamento resulta de uma melhor atuação das marcas de fabricante? Certamente, sim… mas não seria possível se, da parte de alguns dos principais retalhistas, não se sentisse uma certa inflexão estratégica, em que não abdicando da competitividade em termos de preços e de sortido, se parece ter percebido que a melhor forma de concorrer com o sucesso dos chamados retalhistas de sortido curto passa por se constituir como uma alternativa diferenciada — e não tanto uma cópia sempre ‘manca’ — que é oferecida ao consumidor.
Apesar disso e como no início referi a propósito do estudo do Banco Central Europeu, a forte inflação sentida em 2022 e 2023 deixou marcas profundas na perceção dos cidadãos e na sua predisposição para o consumo. Dizem os números que as taxas de poupança em Portugal se situam hoje em níveis anormalmente elevados. Aparentemente, muitas famílias estão a verter os adicionais do seu rendimento disponível, seja para a redução dos seus níveis de endividamento, seja para o reforço das suas poupanças individuais. E isso é, logicamente, positivo para a economia nacional, via dívida e via investimento, mas é sempre um sinal menos interessante para o ângulo do consumo.
Vale sempre a pena recordar que o consumo também tem efeitos positivos no crescimento e desenvolvimento económicos, gerando investimento, postos de trabalho e robustecimento de muitas fileiras produtivas, sendo que, por exemplo, o tão elogiado crescimento do PIB em Portugal nos últimos dois anos foi muitíssimo alavancado pelo consumo interno. Não tanto o público, mas especialmente o consumo realizado pelas famílias.
Mas, regressando ao quadro do chamado universo FMCG, aquela menor predisposição para o consumo acaba por ser ilustrada por uma manutenção de uma cesta de compras curta e muito frequente. Números muito recentes mostram que, em média, cada família vai 13 vezes às compras a cada mês (esse número chega a umas impressionantes 17 vezes nas faixas etárias mais altas). Elevada frequência e ticket baixo, têm duas consequências próximas: o pragmatismo do ato de compra, com baixa relevância da chamada compra de impulso e com evidente penalização de muitas categorias de produto e, por outro lado, a concentração das compras nas chamadas lojas de proximidade onde, tendencialmente, a área de venda é mais reduzida, o sortido disponibilizado ao consumidor é mais curto e onde muitas marcas, especialmente as chamadas segundas e terceiras marcas, não estão presentes, escapando às escolhas dos consumidores.
Outro ângulo, também menos positivo, prende-se com a desaceleração que se parece começar a sentir no turismo em Portugal. Em 2024 continuaram a bater-se recordes, mas as taxas de crescimento, depois de anos consecutivos (com o ‘intervalo’ da pandemia pelo meio) a crescer a dois dígitos, a comprimirem e a deixar entrar alguma ansiedade no setor. Uma mistura de fatores externos e ‘pecados’ internos, em que — como acima indicado — as dificuldades económicas que importantes mercados emissores atravessam, se combinam com um agressivo aumento dos preços de hotelaria e restauração em Portugal, algo proibitivos para as nossas famílias, menos competitivos do que em momentos anteriores, para quem nos visita.
Tudo isto nos conduz a 2025, no qual entramos com um otimismo moderado, em que se observam sinais positivos a nível de reposição salarial, de pressão fiscal ou de evolução de taxas de juros, mas que, em simultâneo, nos deixam vislumbrar algumas nuvens no horizonte, com os temas das dinâmicas do turismo e da potencial erosão do emprego em importantes setores de atividade, casos do setor automóvel, como de importantes setores exportadores como os do têxtil ou do calçado.
Contudo, diria que o grande ponto de interrogação, em 2025, será o da evolução da taxa de inflação, considerada por muitas importantes entidades e analistas, como estável dentro de um padrão ‘civilizado’ de entre 2% e 3%. Temo, no entanto, que a combinação de algumas matérias-primas que têm, nesta altura, as suas cotações totalmente descontroladas, com a explosiva situação geopolítica que atravessamos, possa ter impactos muito negativos em fatores como combustíveis, energia, transportes, fretes, seguros… o que, como todos sabemos, gera uma espiral de agravamentos de preços a que nenhum produto ou país fica imune.
Mas tentando confiar em entidades e analistas e regressando ao mundo do grande consumo e das marcas em Portugal, diria que — com a inflação controlada — podemos assistir a um ano em que haverá, uma vez mais, recuperação dos salários reais, uma pressão fiscal um pouco menos asfixiante e um efeito positivo, agora impactando os doze meses do ano, da redução das taxas de juros.
Se sim, se isso se verificar, antecipo que, no mercado, observaremos uma trajetória mais clara de distinção entre as propostas de sortido e de valor apresentadas pelos chamados distribuidores convencionais face ao modelo de negócio dos retalhistas de sortido curto (Lidl, Mercadona, Aldi). Uma maior chamada de atenção para temas como a oferta, a inovação ou a experiência de compra, para lá da mais comum pressão comunicacional em torno dos preços e a continuação da desaceleração da marca própria, em linha com o que observamos na segunda metade do ano transato.
Do lado das marcas, a expectativa está numa evolução mais positiva da cesta de compra dos consumidores, na recuperação (nalguns casos, a reentrada) do espaço de algumas categorias de produto nessa mesma cesta e, absolutamente essencial, a recuperação das vendas em volume, para além, claro, dos ganhos em valor.
Para muitos produtos e para muitas marcas a recuperação de volumes é importantíssima e pode ser mesmo uma questão de sobrevivência ou de presença no mercado nacional. Num mercado que antecipa crescimentos em volume ainda relativamente anémicos, isto significará que para muitas marcas não chegará colher a sua parcela do crescimento do seu segmento e terão que ultrapassar os seus competidores, sejam eles as marcas concorrentes, seja a marca própria, o que — como facilmente se compreende — para muitas corresponderá à versão atual dos 12 Trabalhos de Hércules.
Num mercado muito concentrado — os sete maiores players detêm 85% do mercado — a questão da penetração é fundamental, com algumas empresas a terem muito poucas insígnias em que não estão ainda presentes (insígnias muito avessas à inclusão de produtos de marca nos seus lineares) e como tal pouco espaço de crescimento adicional. Para muitas outras, especialmente aquelas que não são reconhecidas como marcas líderes, a questão coloca-se principalmente no número de lojas em que conseguem estar presentes em cada insígnia. Ter um acordo de fornecimento com um dos grandes players pode significar não estar presente senão num número relativamente curto de espaços comerciais e beneficiar, apenas, do contacto com uma parcela não demasiado expressiva dos consumidores que fazem compras naquela cadeia de distribuição.
Num mercado tão concentrado pode, pois, ser difícil encontrar espaços de crescimento e uma das linhas de ampliação dessa penetração pode também passar por alguma especialização e uma atenção prioritária relativamente a grupos de consumidores que, de forma algo surda, são quem nesta altura gera novas e relevantes dinâmicas nos mercados: os consumidores que vivem sozinhos ou em mecânicas de habitação partilhada, os consumidores mais velhos ou as crescentes franjas de população estrangeira que começam a ter densidades muito fortes em várias regiões do país.
Num mercado já naturalmente concentrado, as marcas terão ainda que enfrentar os fenómenos das centrais de compras ou de negociação ou das alianças internacionais de retalhistas, que para além do impacto e tensão negocial, geram um sobrecusto, associado às múltiplas ‘portagens’ a pagar para que os produtos cheguem às prateleiras, penalizando os fornecedores e penalizando também os consumidores.
Em conclusão, 2025 ‘nasce’ com os pilares necessários para que se converta num ano positivo para a área do grande consumo, beneficiando — em especial — de uma previsão de recuperação do poder de compra. No entanto, o céu não está totalmente limpo, vendo-se algumas nuvens no horizonte — a recuperação pouco ambiciosa da cesta, um turismo que já não parece injetar o mesmo oxigénio na economia, as dificuldades económicas em muitos mercados importantes para o nosso país, a inflação descontrolada de algumas matérias-primas — as quais, esperamos, apesar de tudo, não se venham a converter numa destas tempestades que agora gostamos de batizar.
Infelizmente, vemos hoje no cenário internacional e no contexto geopolítico quem repita, vezes sem conta, ‘danças-da-chuva’ cujo único objetivo parece ser o de converter nuvens em tempestade e, não é difícil perceber, Portugal não tem dimensão nem ‘feiticeiros’ que possam inverter esse estado de coisas.
Por isso, repito uma frase velha, mas sempre atual: há que desejar o melhor, sem nunca deixar de estar preparado para um pior que pode estar escondido bem próximo de nós.
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