
Jornalista: uma espécie em vias de extinção
Este não é um artigo de memórias, é uma reflexão breve sobre o fim do jornalismo livre face às ameaças tecnológicas, económicas e políticas.
Comecei a ler jornais com sete anos. Fiz jornais de parede e de escola e a sério (graças à bondade de um dos heróis de sempre, Miguel Esteves Cardoso). Por lá andei 14 anos. Tive a sorte de ter trabalhado e aprendido com Paulo Portas, Vasco Pulido Valente, Constança Cunha e Sá, António Ribeiro Ferreira, e muitos, muitos, outros.
A minha escola foi “O Independente” e os meus mestres foram os melhores, os mais livres, os mais loucos apaixonados pela liberdade de imprensa que já conheci. A nossa liberdade e independência permitia-nos tudo, até errar. Éramos miúdos, putos estúpidos, arrogantes; mas éramos sobretudo levados por uma paixão irracional (como todas as boas paixões) pela verdade, contra os poderes de barro que se queriam impor numa sociedade fechada, atrasada e pouco informada.
Não éramos meros elementos de mediação entre fontes e leitores: intervínhamos, tínhamos opinião e raramente nos contentávamos com a versão oficial dos factos. Chateávamos, íamos aos sítios, falávamos às pessoas, fazíamos milhares de quilómetros em digressão pelo país porque a “verdade” não se encontrava no telefone ou na denúncia anónima. Passávamos também muito tempo nos tribunais, é certo, e muitas vezes merecemos perder processos — a ânsia de escrever por vezes gerava uma tensão insanável com a realidade.
Este não é um artigo de memórias, é uma reflexão breve sobre o fim do jornalismo livre face às ameaças tecnológicas, económicas e políticas.
“To believe in democracy is to understand that each of our citizens has wisdom and has a voice. And if we refuse to listen to that voice, even our most successful fights will secure very little.
As Pope John Paul II – in my view, one of the most extraordinary champions of democracy on this continent or any other – once said, “Do not be afraid.”
We shouldn’t be afraid of our people, even when they express views that disagree with their leadership.”
J.D. Vance, vice-presidente dos EUA, Munique
O vice-presidente dos EUA tem razão, quem pode discordar?
Ao mesmo tempo, Donald Trump veta meios e jornalistas que se recusam a rebatizar o Golfo do México; limita ao acesso a informação pública; insulta jornalistas pelo nome; apela ao despedimento de outros; pede o despedimento de alguns; manda cancelar assinaturas de meios de comunicação que não são subservientes; permite que Musk faça alegações falsas sobre subsídios a meios como a agência Reuters ou o Politico.
A acrescentar a tudo isto, as conferências de imprensa na Casa Branca passaram a peças ensaiadas, com perguntas idiotas a que o presidente Trump responde com voz delicodoce: “Boa pergunta, obrigado”. Deixo este conselho: assista a uma conferência de imprensa de Trump na íntegra (estão disponíveis no YouTube ou noutra rede social perto de si) para poder perceber o grau demencial e o perigo da coisa.
Por cá ainda não atingimos este nível, mas nota-se a irritação de alguns políticos com os jornalistas: falam para a câmara, mas desdenham quem a carrega. Dizem querer um mundo sem mediação jornalística, porque o objetivo é comunicar diretamente com os portugueses — na verdade têm receio da inteligência humana. Sem verificação de factos, sem análise crítica.
Os jornalistas não são santos: cometem erros, como todos cometemos, podem ser um pouco arrogantes e de vez em quando erram, algumas vezes por impreparação, convicção ou ignorância atrevida. Mas a larga maioria quer ser apenas jornalista.
Os condicionalismos do modelo de negócios limitam muito a forma como agora se faz jornalismo. O país é pobre e as empresas de comunicação vivem como vivem os portugueses: a contar moedas para pagar contas. Outras nem isso. A atração pelo sensacionalismo é grande; as redações estão cheias de jornalistas mal pagos, desanimados e sem vislumbre de melhores dias: a pirataria, a informação gratuita, ou as redes sociais ameaçam o negócio, embora a procura tenha crescido exponencialmente.
Vêm aí tempos ainda mais caóticos e perigosos. Os algoritmos das redes sociais determinam padrões de consumo e escolhem o que nós lemos e vemos. Urge pedir transparência e acesso aos códigos secretos dos grandes operadores de lavagem cerebral. Urge pedir às empresas de media que formem mais, paguem melhor e tratem melhor os jornalistas, porque são os humanos e não os algoritmos quem pode garantir a liberdade em tempos de incerteza. Mais do que nunca precisamos deles: humanos, sensatos, informados, críticos e independentes.
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