
Famalicão e o Verão Quente de 75: E se pudéssemos revisitar o passado para moldar os próximos 50 anos?
O preço da falta de civilidade entre opostos não matou só pessoas; matou também ideias. E se a experimentação tivesse sido valorizada desde logo? E se começássemos agora?
Tinha apenas seis anos quando o medo se instalou em Famalicão. Era um catraio recém-chegado de Moçambique e já muito bem treinado a reconhecer tumultos e o terror nos olhos dos adultos. Vivendo a menos de um quilómetro do epicentro do fogo, em Vila Nova de Famalicão, testemunhei o pânico que se apoderou daquela cidade do Norte: desorientada e agitada, com rostos crispados pelo medo que toldava a razão. Não se falava de outra coisa senão da morte do Luís, filho do Barroso, no assalto à sede do PCP, em pleno Verão Quente de 75.
Cinquenta anos depois, ao meditar sobre aqueles difíceis dias, a minha mente inevitavelmente percorreu as páginas tumultuosas da nossa história, detendo-se nesse verão tão marcante. Ao revisitar esses tempos e a trajetória da cidade desde então, não consigo evitar as perguntas: e se tivéssemos podido reescrever o nosso passado? Que caminhos diferentes teríamos trilhado? Como seria a Famalicão que hoje conhecemos?
E se a polarização tivesse dado lugar ao respeito? E se tivéssemos sabido ouvir o outro lado? Uma cidade com mais espaço de debate, onde a divergência de ideias tivesse sido encarada como riqueza e não como ameaça. Teríamos poupado a vida do nosso vizinho Luís, apanhado por uma bala aos 20 anos, enquanto tentava atravessar os tumultos para socorrer outro que já jazia no chão. Ambos morreram sem nunca terem vivido a liberdade que se gritava nas ruas.
O Luís Barroso era um jovem enfermeiro, e a sua morte continua a lembrar-nos o preço da intolerância e da raiva cega de ambos os lados da barricada. Uma rua hoje leva o seu nome — mas quantas vidas teriam podido ser vividas plenamente, numa cidade que tivesse sabido escutar e compreender em vez de se confrontar?
O preço da falta de civilidade entre opostos não matou só pessoas; matou também ideias. Talvez o maior medo daqueles tempos tivesse sido, afinal, o medo de pensar diferente e de ser diferente. Por isso me pergunto: e se tivéssemos aprendido mais cedo a canalizar essa energia para Imaginar, criar e experimentar?
E se a experimentação tivesse sido valorizada desde logo? Se as fábricas do Vale do Ave tivessem dedicado 10% do seu tempo à experimentação? Se cada empresa tivesse projetado o seu pequeno laboratório da criatividade? Se o “saber fazer” tivesse sido complementado pelo “ousar criar”? E se os milhões dos fundos sociais europeus tivessem sido investidos em inteligência humana, em vez de se terem perdido pelo norte em projectos sem norte? Como teria sido se a cidade que tão bem soubera usar as mãos, tivesse aprendido mais cedo a dar asas aos neurónios.
E se os talentos criativos tivessem ficado, em vez de fazerem as malas? Quantos criativos Famalicão terá perdido nas últimas décadas? Eu fui apenas um entre muitos. Que empresas poderiam ter nascido se as ideias mais ousadas tivessem sido cultivadas em vez de cortadas à nascença? Como seria a cidade se o êxodo criativo tivesse sido trocado por um influxo de inovadores? Também eu parti para poder criar — e quantos mais terão feito o mesmo? Cada um que saiu levou consigo visões não realizadas de uma cidade diferente.
E se começássemos agora?
Ainda iríamos a tempo de transformar Famalicão num centro de Criatividade e Experimentação. Que vantagens competitivas poderíamos potenciar? Como transformar o ‘Verão Quente’, não numa âncora do passado, mas num propulsor para o futuro? Talvez, 50 anos depois, a ferida da família Barroso ainda sangre. Mas é precisamente a pensar nas famílias que hoje se debatem com filhos curiosos, inquietos e inconformados, que acredito: estaríamos sempre a tempo de começar.
A história não poderia ser reescrita, bem sei. Mas os próximos 50 anos seriam uma tela em branco que poderíamos começar já a construir. Por isso, convido todos os criativos, pensadores e sonhadores a juntarem-se a nós na Fundação Cupertino de Miranda, no dia 26 de Abril. Vamos, em conjunto, imaginar e construir o futuro que desejamos para esta terra e para tantas outras em Portugal. Um futuro onde a criatividade floresça, a experimentação seja valorizada, o respeito prevaleça, e os talentos permaneçam e prosperem.
Saí de Famalicão, mas Famalicão é que nunca saiu de mim. E por isso, agora será o momento de alimentar a Criatividade e Inovação made in Famalicão — como em tantas outras cidades que também tiveram os seus Verões mais ou menos quentes.
Mas desta vez, que o verão sirva para acender. E não para queimar.
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