Quando a luz se apagou, vimos a escuridão que já habitava

  • André Alves
  • 15:28

O verdadeiro risco, hoje, não é ficarmos sem luz de um momento para o outro. É deixarmos de perceber que estamos a viver às escuras há demasiado tempo.

No passado dia 28 de abril, a eletricidade decidiu ausentar-se, levando consigo, por instantes, a ilusão de controlo absoluto que nutrimos sobre o nosso quotidiano. A Península Ibérica mergulhou na escuridão. Literalmente. Luzes apagadas, telemóveis em silêncio, terminais de pagamento inoperacionais, elevadores parados e, para agravar, cafés interrompidos a meio da sua extração — uma tragédia nacional.

Foi um corte abrupto, mas instrutivo. Um lembrete de que a infraestrutura que sustenta a vida moderna — digital, célere, eficiente — é mais frágil do que gostamos de admitir. Num instante, compreendemos que estar “ligado” é menos uma escolha do que uma dependência. Sem energia, pouca coisa se move. Nem pessoas, nem ideias, nem decisões.

Contudo, a ausência de ecrãs e notificações revelou algo raro: presença. As pessoas saíram para a rua, conversaram com desconhecidos, olharam-se nos olhos. Foi como se o mundo, privado da sua corrente elétrica, tivesse recarregado outra — a humana. Durante um dia, vivemos offline, e isso, paradoxalmente, iluminou-nos.

A eletricidade regressou. O sistema estabilizou. Mas o episódio deixou um pensamento: este apagão foi visível, imediato, com origem identificada e solução técnica. Já os outros apagões, que atravessamos há mais tempo do que devíamos, não causam manchetes nem planos de contingência. Talvez porque já nos habituámos à escuridão.

Essa escuridão é composta por uma série de apagões que, infelizmente, não causam filas de trânsito nem abrem telejornais. Não provocam falhas técnicas. Apenas apagões progressivos daquilo que sustenta uma sociedade civil capaz, crítica e sustentável.

Vejamos, a título de exemplo, o apagão social que vivemos. Em 2024, segundo o Eurostat, mais de 93 milhões de pessoas na União Europeia estavam em risco de pobreza ou exclusão social. Em Portugal, 19,7% da população encontrava-se nesta situação. Estes números não são novos, mas são cada vez mais ignorados. Como se a exclusão tivesse deixado de ser uma emergência para se tornar apenas mais uma estatística estável.

Depois há o apagão democrático. O desinteresse pela política cresce. A abstenção torna-se crónica. A desconfiança nas instituições instala-se como ruído de fundo. O problema é que, quando demasiadas pessoas deixam de acreditar no sistema, o sistema continua a funcionar, mas entra em piloto automático. E o risco maior não é o colapso. É a irrelevância.

Segue-se o apagão fiscal. Mais subtil, mas não menos real. Enquanto o cidadão comum vê os seus rendimentos tributados à fonte, há fluxos financeiros globais que escapam por entre as malhas legais, otimizados ao milímetro. Não é fraude. É estrutura. Mas o efeito é o mesmo: menos recursos disponíveis para o que é público e comum. Uma falha constante no circuito da equidade.

E, por fim, o apagão da atenção crítica. O mais difícil de detetar, talvez o mais perigoso. Vivemos ligados a tudo, mas atentos a quase nada. Saltamos de conteúdo em conteúdo, reagimos em vez de refletir, consumimos informação sem digerir. Pensar com tempo e profundidade está a tornar-se uma prática quase subversiva.

Estes apagões não surgem com o impacto repentino de uma falha elétrica. Não provocam comoção imediata. Mas são mais corrosivos precisamente por isso: por se tornarem habituais. Por deixarem de ser notícia. Por passarem a ser o novo normal.

O apagão elétrico foi um incómodo. Mas também foi um espelho. Mostrou-nos a fragilidade dos sistemas em que confiamos. E, talvez, a urgência de prestar atenção aos outros sistemas — sociais, políticos, económicos e culturais — que continuam a desligar-se aos poucos, sem alarme, sem manchete, sem reação.

O verdadeiro risco, hoje, não é ficarmos sem luz de um momento para o outro. É deixarmos de perceber que estamos a viver às escuras há demasiado tempo.

  • André Alves
  • Brand & digital marketing director da Católica Lisbon School of Business & Economics

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