
O Espelho de Narciso Partiu-se (e ninguém avisou os partidos)
Não é preciso concordar com eles para perceber porque é que ganham força. Estão atentos, estão presentes, e, acima de tudo, sabem que comunicar política hoje é muito mais do que discursar:
Conta o mito que Narciso morreu afogado ao tentar beijar a própria imagem refletida na água. Tão encantado com o que via que se esqueceu do que o rodeava. Se os partidos tradicionais em Portugal fossem personagens mitológicas, seriam Narcisos com redes sociais: deslumbrados com o que acham ser, incapazes de perceber que o país do outro lado do espelho já não os vê com a mesma beleza. Aliás, muitos já nem olham para eles.
No último domingo, o espelho estilhaçou-se de vez. O Chega deu um salto inquietante, passando a ocupar o centro do palco. O PS, esgotado e sem discurso claro, está à beira de cair para terceiro lugar (quando se contarem os votos dos emigrantes, é muito provável que o seja). E a AD, essa resistente por defeito, subiu… mas à tangente. Se não fosse o cansaço generalizado e a vontade dos eleitores em ter um governo que dure mais de um ano, também podia ter sido em muito prejudicada.
Mas não se trata apenas de siglas. A verdadeira questão não são as cores, mas sim o desgaste evidente de uma forma antiga de comunicar a política. A mesma fórmula de sempre: arruadas com empolgados militantes (e quase só eles), comícios com palavras de ordem recicladas, tempos de antena e debates na televisão como se ainda estivéssemos nos tempos da velha senhora. Uma comunicação que se ativa quando o calendário eleitoral assim o exige, mas que ignora o dia-a-dia de quem vota.
Entretanto, quem cresce? Chega, IL, Livre. Cada um com o seu estilo, o seu nicho, o seu tom, mas todos apanhados pela mesma onda: a vontade de romper com o velho. Seja lá o que isso signifique. Não é preciso concordar com eles para perceber porque é que ganham força. Estão atentos, estão presentes, e, acima de tudo, sabem que comunicar política hoje é muito mais do que discursar: é marcar presença constante, falar claro, mobilizar emoções e estar onde as pessoas estão. Todos os dias, e não só no mês que antecede o voto.
É fácil (e bastante confortável) ridicularizar os eleitores que optam por soluções simples para problemas complexos. Mas talvez o erro esteja em subestimar o desespero, o desencanto ou até o aborrecimento. Hoje, o eleitor procura alguém que lhe fale ao ouvido (no TikTok, no Instagram, no café, no grupo de WhatsApp da freguesia). Alguém que pareça lá estar, mesmo quando não há campanha.
E sim, este “novo” pode ser perigoso, confuso ou até disfarçado de solução milagrosa. Mas é novo. E num mundo onde tudo é descartável, muitas vezes basta ser novo para captar a atenção.
Se os partidos do centro (do centro-esquerda ao centro-direita, passando pelo centro da mesa da sala) não perceberem isto, a erosão vai continuar. Porque liderar hoje não é só apresentar bons planos. É saber comunicá-los com clareza, urgência e emoção. Com ideias fortes, com presença nas ruas e nas plataformas digitais, tudo ao mesmo tempo, todo o ano.
E atenção: as eleições autárquicas que se aproximam serão um teste ainda mais explícito a esta nova realidade. Porque, se há voto personalizado, é o voto local.
No fim, talvez a lição mais dura seja esta: a beleza está mesmo nos olhos de quem vê. E se os grandes partidos não conseguem perceber o que um terço (ou mais) da população vê de belo em coisas tão feias como o Chega, talvez seja porque continuam demasiado ocupados a olhar para o espelho.
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