“A Coesão pode ser compaginável com a Defesa”

Ricardo Rio defende a criação de outras fontes de financiamento para que a UE tenha uma verdadeira política de defesa sustentável. No ECO dos Fundos lamenta que a Coesão esteja a ser estigmatizada.

Ricardo Rio considera que na recente aposta na Defesa a “Europa está a recuperar o tempo perdido” e que o “reforço tem de ser feito de forma a criar condições de sustentabilidade para a indústria da defesa europeia”. Por isso, o autarca de Braga e relator do parecer sobre a Prontidão Europeia para a Defesa 2030 defende a importância de encontrar fontes alternativas de financiamento para que a Coesão não seja moeda de troca. Até porque “subtrair verbas que estariam alocadas a outras prioridades para as dirigir para a área da defesa vai criar tensões”.

“Se negligenciarmos o investimento que tem ainda hoje de ser feito na coesão, vamos ter tensões sociais cada vez maiores, vamos ter seguramente também terreno muito fértil para o fomento do aparecimento de discursos mais demagógicos, mais populistas, em torno do próprio projeto europeu”, alerta o também comissário europeu sombra para os Assuntos Locais da Eurocities no ECO dos Fundos, o podcast quinzenal do ECO sobre fundos europeus.

Ricardo Rio lamenta que a Coesão tenha “sido um bocadinho estigmatizada”. “A nível europeu há quem ache que a Coesão não é uma prioridade. É uma ideia completamente errada”, defende. Para o responsável, “a Coesão pode ser compaginável com a questão da Defesa”.

É o relator do parecer sobre a Prontidão Europeia para a Defesa 2030, o plano de 800 mil milhões de euros para financiar o aumento das despesas com defesa. Quais as suas principais conclusões?

Há várias dimensões que são relevantes. A primeira, que tem suscitado um consenso transversal em todos os domínios onde tem sido discutida, quer a nível de Comissão, quer de vários outros espaços com outros interlocutores externos, é de que a Europa está a recuperar o tempo perdido. Esta questão do investimento massivo em defesa é algo que decorre, de forma muito particular, destes riscos com que agora estamos confrontados, dos desafios que, dia a dia, vamos sentindo, sobretudo nas fronteiras mais a Leste da Europa. Mas é também, obviamente, um esforço que a Europa está a fazer para poder criar condições de encarar o futuro também nesta área da defesa com uma perspetiva mais otimista daquela que tem hoje.

A primeira ideia, reforçar o alinhamento com esta prioridade europeia ao setor da defesa. Segunda dimensão importante é que esse reforço tem de ser feito de forma a criar condições de sustentabilidade para a indústria da defesa europeia. Não é apenas numa lógica de outsourcing aos nossos parceiros tradicionais, porventura aos Estados Unidos ou outros, investindo recursos europeus para adquirir material militar, formas tecnológicas ou outras que possam ser úteis do ponto de vista da defesa. É apoiar a criação e a sustentação de uma indústria europeia, o que obriga a duas coisas, que estão refletidas nesse parecer. A primeira é que tem de existir uma maior concertação entre os Estados-membros para procedimentos de contratação agregado, ou seja, não apenas numa base individual de cada um dos Estados-membros.

Ou seja, assegurar que as aquisições conjuntas envolvem, no mínimo, dois Estados-membros.

Ter no mínimo dois Estados-membros a participarem em cada processo de contratação e depois haver também uma cativação de pelo menos 70% das verbas que sejam investidas, por exemplo, agora através do mecanismo SAFE, para poder dirigir para produtos que sejam gerados e que gerem valor também no contexto europeu. Nesta diferente dimensão, quer da oferta, quer da procura, haver de facto um investimento central a nível europeu.

Receia que a medida acabe por beneficiar essencialmente as indústrias da Alemanha, França ou Itália, em detrimento de países mais pequenos com menos tradição na indústria do armamento?

Esse é um risco e, precisamente por ser um risco, é que, no próprio parecer e nestas discussões que temos promovido, temos enfatizado muito a dimensão regional, ou seja, de que a Europa tem de promover a criação de clusters regionais que permitam aproveitar a capacidade instalada em diferentes setores de atividade e fazer a ligação entre esses setores tradicionais, porventura até normalmente afetos a outras áreas de desenvolvimento da nossa sociedade, para os orientar também para o setor da defesa, criando depois relações entre esses maiores players, que existem obviamente em alguns dos Estados-membros, e essas pequenas e médias empresas que podem ajudar a transformar este investimento em oportunidades de geração de emprego e de economia para essas outras regiões.

A Europa tem de promover a criação de clusters regionais que permitam aproveitar a capacidade instalada em diferentes setores de atividade e fazer a ligação entre esses setores tradicionais.

Estamos a falar do dual use, que pode ser uma tábua de salvação para a indústria têxtil nacional?

Sim, essa é uma das questões que também está muito presente. Do ponto de vista da opinião pública, uma das formas de motivar os cidadãos para apoiarem este investimento na defesa é demonstrar que não estamos apenas a trabalhar numa lógica militar. Estamos a criar condições para que algumas destas tecnologias, alguns destes produtos que possam ser desenvolvidos, tenham benefícios para a sociedade no seu todo. Esta questão do dual use, de poder aproveitar até inovações tecnológicas, não só para fins militares, mas também civis, é algo muito presente e que tem de ser bastante mais fortalecido a nível europeu. Países como Portugal podem ter uma grande margem de afirmação, desde que exista capacidade tecnológica, desde que existam condições de desenvolvimento de investigação e desenvolvimento, quer na academia, quer nos centros de investigação, depois faltará transpor esse mesmo conhecimento para o setor económico e eventualmente aproveitá-lo também no contexto destes fundos.

Já falou do SAFE, o instrumento de 150 mil milhões de euros que vão ser canalizados para a indústria da defesa. Portugal já tem pré-alocados 5,8 mil milhões. Quais deveriam ser as prioridades nacionais para a aplicação desta verba?

Em primeiro lugar, este instrumento é já hoje um sucesso. A própria presidente da Comissão Europeia anunciou, numa conferência em que se celebrava o primeiro aniversário do relatório Draghi, que esses 150 milhões já foram tomados por cerca de 19 Estados-membros. Essa verba já está completamente esgotada. É um mecanismo que também por isso vai ter condições para produzir efeitos rápidos. Do ponto de vista português, há várias dimensões. Uma primeira tem a ver com esta dimensão da capacitação tecnológica e do apoio ao tecido de pequenas e médias empresas que podem desenvolver atividade neste setor. Dou-lhe o exemplo muito próximo que tenho na cidade de Braga e na região envolvente. Falava há pouco da indústria têxtil. Temos, por exemplo, empresas que já hoje fazem fardamento militar, que fazem instrumentos de proteção para agentes militares ou das forças de segurança. Temos tecnologias de informação dirigidas também para este setor. Temos na área da metalomecânica também cada vez mais empresas a trabalharem com os tais grandes players internacionais no desenvolvimento de material e de produtos concretos. O fortalecimento desta capacidade industrial, no interesse português, seria seguramente uma das primeiras áreas a investir nestas verbas que vão estar disponíveis.

Estamos a falar de empréstimos, à semelhança da bazuca europeia. Estamos a abusar do endividamento, podendo pôr em risco a saúde das contas públicas europeias?

Essa é uma preocupação que também temos expressado, aliás, o próprio Rearm Europe, o programa que permitirá atingir os 800 mil milhões de euros de investimento, tem a ver muito com essa derrogação que foi dada aos Estados-membros — Portugal foi um dos que já o solicitou — de poderem não imputar às contas do défice, o investimento que venha a ser feito em defesa. A presidente von der Leyen disse que há 16 Estados-membros que já o solicitaram. Isto coloca a questão do ponto de vista da sustentabilidade, não só do financiamento, mas também da continuidade do investimento.

Tive a oportunidade de falar com os responsáveis do Banco Europeu de Investimento (BEI), da Associação de Indústria de Defesa Europeia, com o Conselho Económico e Social e uma das grandes preocupações que existe é que isto não é algo que se resolve one shot. Não é por eu gastar muito dinheiro durante um, dois, três, quatro, cinco anos que tenho uma indústria de defesa fortalecida. Temos de olhar para isto numa lógica de médio e longo prazo. Ou seja, os Estados-membros têm de o fazer de uma forma continuada, os tais 5% do PIB que se discutem na NATO e outros compromissos. E para o fazerem de uma forma continuada têm de alocar recursos próprios e não apenas numa lógica de empréstimo e de crédito que possam obter a esse mesmo tipo de investimentos.

“ão é por eu gastar muito dinheiro durante um, dois, três, quatro, cinco anos que tenho uma indústria de defesa fortalecida”, alerta Ricardo Rio, presidente da Câmara Municipal de Braga, em entrevista ao podcast “ECO dos Fundos”, sublinhando a importância dos Estados investirem 5% do PIB em defesa e de se diversificarem as fontes de financiamento.Hugo Amaral/ECO

Se não forem criadas outras fontes de financiamento que permitam munir a União Europeia e cada um dos Estados-membros desses mesmos recursos vamos ter uma dificuldade acrescida que é termos de subtrair verbas que estariam seguramente alocadas a outras prioridades para as dirigir para a área da Defesa e isso obviamente vai criar tensões até do ponto de vista social, havendo outros desafios igualmente pertinentes no atual contexto.

A Coesão surge sempre nesta discussão como o parente pobre face à defesa?

A Coesão tem sido um bocadinho estigmatizada. A nível europeu há quem ache que a Coesão não é uma prioridade. É uma ideia completamente errada, porque aquilo que fortaleceu a Europa durante os seus anos de afirmação foi a capacidade de promover um desenvolvimento solidário entre os seus diferentes Estados-membros, apoiando o equilíbrio no crescimento das zonas mais desfavorecidas, como uma parte substancial de Portugal, que tinha menos condições de expansão, criando condições para que, a partir daí, esse desenvolvimento possa ser também sustentado. Se negligenciarmos o investimento que tem ainda hoje de ser feito na Coesão, vamos ter tensões sociais cada vez maiores, vamos ter seguramente também terreno muito fértil para o fomento do aparecimento de discursos mais demagógicos, mais populistas, em torno do próprio projeto europeu. E isso vai, a prazo, ameaçar a coesão europeia, enquanto organismo que se deve afirmar cada vez mais também no contexto internacional. A Coesão pode ser compaginável com a questão da Defesa. Neste parecer, uma das ideias que se defende é de que se tem de trabalhar com as regiões e com as cidades novas formas de aproveitamento também destes recursos para promover o desenvolvimento económico.

Por exemplo, nos Estados do Leste, a situação que hoje vivemos cria tensões acrescidas do ponto de vista económico. Há uma diminuição do turismo, as pessoas têm mais medo de irem para determinadas regiões, há uma diminuição da atividade económica, há uma deslocalização dos recursos humanos. Tudo isso tem de ser compensado. Se olharmos para esta questão, numa perspetiva agregada a nível europeu, temos de perceber que também uma parte substancial dos investimentos que têm de ser feitos tem de ser para mitigar esses impactos nessas mesmas regiões.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

“A Coesão pode ser compaginável com a Defesa”

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião