Ovelhas e pastores
O “Pastor” é um bom manual de bem fazer, está lá tudo: uma ideia simples, uma mensagem clara, um chuto nas convenções da categoria, uma pitadinha de humor e um cheirinho de zeitgeist.
Em 1995 os intervalos publicitários dos canais de televisão passaram, não poucas vezes, um anúncio de 30” que começava com uma panorâmica de um campo onde um rebanho de ovelhas pastava, guardadas por um pastor e o seu cão. A banda sonora era marcada pelo som dos chocalhos misturados com os balidos das ovelhas. De repente a cena bucólica e rural era interrompida pelo que, em 1995, se podia designar pelo “som da modernidade”: o toque de um telemóvel. Ao escutá-lo as ovelhas param de pastar e levantam as cabeças como que a inquirir sobre o bizarro ruído. Até o cão pastor levanta a cabeça com uma expressão expectante. Cortamos para um plano do pastor que, do meio das suas vestes típicas, retira um telemóvel, puxa a antena para fora (uma coisa que era preciso fazer aos telemóveis em 1995) e atende a chamada dizendo “tô chim?” Depois de uma breve pausa diz “um momento” e virando-se para o rebanho informa “é para mim.” Informadas pelo pastor as ovelhas voltam a pastar e a balir, tornamos a ver um plano geral do campo e depois de uma breve locução sobre a cobertura do serviço GSM do operador o anúncio termina com o logótipo e a assinatura da marca: “Telecel, onde você estiver, está lá.”
Estes 30” foram, nos idos de 1995, uma enorme bomba. As pessoas adoraram o anúncio, riram-se com ele, trouxeram-no para as conversas de café e, em pouco tempo, onde quer que se ouvisse um telemóvel tocar havia sempre alguém que gritava “tô chim? É para mim!”
O impacto deste anúncio durante a campanha foi brutal, mas terminada a campanha esse efeito manteve-se e perdurou. Três anos depois, em 1998, ano do lançamento do terceiro operador móvel, a Optimus, nos estudos feitos sobre recordação de anúncios na categoria de telecomunicações, lá aparecia o “Pastor”. E no virar do século, 5 anos depois do seu lançamento ainda era frequente ver nesses estudos menções ao “Pastor”.
Arrisco dizer que, hoje em dia, qualquer pessoa que tivesse mais de 10 anos de idade em 1995 se lembra do anúncio do pastor e da frase a ele associada.
O “Pastor” é o melhor exemplo para marketeers e publicitários da minha geração de uma peça de comunicação que conseguiu, em muito, ultrapassar o seu papel enquanto peça de comunicação comercial, transformando-se em cultura. Não cultura num sentido erudito e elitista, mas sim cultura como referência comum “das pessoas” de um determinado tempo. E foi isso que aconteceu quando o “tô chim?” saltou do écran da televisão para a boca das pessoas, quando começou a ser usado como graçola entre amigos, entre colegas de trabalho, e quando continuou a viver mesmo depois da campanha sair do ar.
Este sucesso deveu-se a vários fatores. Em primeiro lugar é uma ideia criativa excelente: é simples, é surpreendente, fácil de entender, divertida. Os 30” que gastamos a ver o “Pastor” são tempo bem empregue, sentimo-nos recompensados e com vontade de ver outra vez. Parabéns ao Edson Athayde (diretor criativo da agência que fez o anúncio).
Mas esta ideia criativa nasce de um contexto que amplia a sua força. Em 1995 a taxa de penetração de telemóveis estava abaixo dos 20% (hoje está acima dos 100%). O telemóvel, o aparelho e o serviço, não eram baratos, eram por isso um símbolo de status e, provavelmente, o gadget mais desejado por todos, mas ao alcance de apenas alguns. A norma na comunicação da categoria era mostrar pessoas “de fato e gravata” em ambiente urbano e “business” a usarem telemóveis, a utilização do cenário rural e do pastor traziam uma nota dissonante à forma como a categoria comunicava e ao mesmo tempo, talvez de uma forma subliminar, encerrava uma promessa de democratização: se até o pastor tem, todos podem vir a ter.
Por outro lado, o cenário de media era completamente diferente do que temos hoje. A internet dava os primeiros passos, poucos a ela tinham acesso e ainda não tinha força enquanto media. A televisão por cabo tinha sido lançada em 1992, e a sua base de clientes era pequena, havia a imprensa que ainda tinha bastante força, e a rádio, mas o grande meio de comunicação era a TV de sinal aberto, o país via o que passava na TV, programas e anúncios, e isso também foi uma ajuda para a enorme popularidade que o “Pastor” conquistou.
Hoje temos a nossa atenção muito mais dispersa: temos muitos canais, temos toda a net, redes sociais, apps,… Sem querer tirar mérito a todos os que trabalharam para tornar real o “Pastor”, acho que hoje seria mais difícil repetir o mesmo efeito, mas isso não nos deve fazer desistir de tentar.
O “Pastor” é um bom manual de bem fazer, está lá tudo: uma ideia simples, uma mensagem clara, um chuto nas convenções da categoria, uma pitadinha de humor e um cheirinho de zeitgeist. Dito assim parece fácil, mas não é por acaso que nestes anos todos não tornou a aparecer outro pastor.
É continuar a tentar.
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