Para a rentrée, o Crème Brûlée

  • José Godinho Marques
  • 3 Setembro 2024

Isto da publicidade, é coisa requentada. É coisa de criativozinhos que têm a mania, so they say. Agora até tem data e mais data, qual pacote de noodles instantâneo, ou IA para escrever filmes.

Acho que todos os publicitários se entusiasmam muito com a suposta nova season do trabalho. No cair da folha, não há espirros nem alergias, há aquela esperança de mexer com novos ingredientes. Há fome, muita fome de criar conceitos para as marcas que deixem água na boca e um frio na barriga. É neste lapso temporal da rentrée que os clientes alocam o temido budget para as suas campanhas do próximo ano, e invariavelmente esquecem-se que até havia um briefing para o natal que já deveria ter entrado. Mas isto é um detalhe, da longa lista de compras do plano. Long live advertising.

É desta ânsia que estrategas e criativos se alimentam, pois então. É setembro. Mas o cardápio, vulgo briefing, tarda a chegar.

Por falar em cardápio: temos Leões em Cannes, Pencils e Sóis, mas não temos Estrelas Michelin, coitados de nós. E é aqui que podemos estabelecer um paradoxo engraçado: em algum momento da nossa história recente, o Santo Graal da premiação está na forma de confecionar comida, criativamente, com ingredientes inesperados. O público tem um respeito que roça a vassalagem pelas criações dos chefs, entre espumas de ostra da ilha de Mann e caviar de sapo virgem da Tasmânia. Vale tudo, quando o outcome é verdadeiramente criativo. Valoriza-se, muito. Paga-se pela exclusividade e pela diferença abismal.

Já isto da publicidade, é coisa requentada. É coisa de criativozinhos que têm a mania, so they say. Agora até tem data e mais data, qual pacote de noodles instantâneo, ou inteligência artificial para escrever filmes e fazer layouts bonitos, qual fermento Royal da criatividade. “- Processo criativo? Devem estar a gozar, hoje em dia está tudo feito”. (E quando isto é dito dentro da própria agência onde se trabalha?) A verdade, é que tudo isto não passa de ferramentas. São batedeiras, fornos, facas e raladores, para pessoas que se ralam em acelerar processos porque o cliente está à mesa e não pode esperar. Ferramentas estas que criámos para otimizar processos. A necessidade aguçou o engenho. Mas aqui não é o estômago a fazer barulho. É o CEO, que tem que apresentar resultados obtidos pelo marketing ao network na rentrée do ano seguinte, senão a sua cabeça é servida numa bandeja de prata, se os seus tempos de gestão não forem banhados a ouro.

O budget, senhores, é que é a essência da coisa. Porquê? Porque fica difícil contratarmos os melhores ingredientes, porque são caros. E esses ingredientes caros, de base, que usamos, são cinzentos, vivem bem acondicionados e chamam-se cérebros. Cérebros de verdade. E não é para confecionar mioleira com ovos mexidos com os ditos. O que é bom paga-se, e precisa de tempo para criar coisas apetitosas que criam brand equity. É que as tais horas e horas que preenchem o excel raramente espelham a verdade do nosso trabalho. Não se esgota no escritório. Vai para a praia e para o duche, para a oficina, para a caminhada, para as férias de família, para o hospital, para o passeio do cão a más horas. O processo criativo não tem paragens. Não é mensurável. Mas agora, na cozinha de autor, até o pão é hipster, e uma boa fermentação demora e é bem-vinda. Aqui, a massa é mãe. Mas na publicidade e na comunicação, o “-A mãe já vai!” não pega. Corta-se na massa. E é tudo para ontem, anteontem e para a semana passada. Todos sabemos que um bife da vazia nunca será um Kobe, porque a maturação traz um sabor inconfundível. Todos reconhecem o valor do açafrão que floresce apenas uma vez por ano e o trabalho que dá cultivá-lo, e que são necessárias cerca de 50.000 flores para obter preciosos 40 gramas. E o trabalho criativo?

Era bom que a maioria das marcas e anunciantes se reconvertessem à valorização do processo criativo. É pela criatividade que se destacam dos demais. Há fenómenos rápidos e pontuais como um Mercadona e os ananases invertidos como um novo Tinder, ou a banana colada com fita-cola à parede do Maurizio Cattelan — uma obra que do nada que é passa a valer 108.000 euros na cabeça de alguém (será que a Tesa® e a Chiquita® fizeram o devido stunt?). Mas estes são stunts que não dependem da consistência criativa de um plano de marketing. O trabalho criativo sólido de uma marca tem um preço. Veja-se a magia do Lidl, da Super Bock e do Ikea. Exemplos de marcas que reconhecem o valor do investimento em criatividade, a partir de dentro. Que tem na comunicação criativa consistente um ativo valioso e é daí que tiram os seus stunts pontuais, com uma segurança conceptual que fortifica a marca e a sua notoriedade de uma forma impecável.

Aqui é sempre bom recordar a lenda que nos fala do Picasso a esboçar numa mesa de café: amassa o desenho para o deitar fora, e uma senhora aproxima-se e pede para ficar com o desenho, dizendo que estaria disposta a pagar por este. Picasso responde:

“-Claro que sim, são 20 mil dólares.”

“-Mas como assim? Você demorou 2 minutos a fazê-lo!”

“-Não, cara senhora. Levei mais de 60 anos para o fazer assim!”

Guardou o guardanapo no bolso e saiu do café.

A marca Picasso deixou um legado de 50.000 obras. Qual é a marca que vai deixar 50.000 peças publicitárias que deixem o consumidor com vontade de as colecionar? Há muitas por aí, com todo o potencial. E sim, o que fazemos é arte, digam o que disserem. Urge que as marcas revejam os seus orçamentos de marketing, porque senão, teremos mais do mesmo a correr em todos os meios. É um investimento, não um custo. Numa ótica de custo, faz-se um conteúdo qualquer e está bom. Cumpriu-se, tapou-se o buraquinho que era preciso tapar. Só que não. É caso para dizer que o cliente poupado estará sempre à espera de uma sobremesa incrível, mas vai ao restaurante mais barato, sem estrelas Michelin e chefs que investiram uma vida no processo criativo, acabando por degustar uma coisa que deixa no ar um perfume temporário a caramelo queimado, com uma bela crosta dourada. Mas o que está na taça, é desgraça – não passa de leite, açúcar, ovos, farinha Maizena®, um pau de canela e uma raspa de limão. A lista de compras do costume, portanto, encapsulada num floreado “Crème Brûlée” que não passa de um leite creme tocado por um espeto de ganadaria em brasa. O mais do mesmo, do rebanho do costume. Que não é o Créme de la Créme, definitivamente.

O Créme de la Créme é outro conceito. E é bom, é bom, é.

  • José Godinho Marques
  • Independent creative director

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