
Preciso de emprego. O marketing não precisa de mim
Parece que a minha profissão está fadada a ser uma peça de museu. Pelo menos é o que ouço muitos a dizerem por aí, depois de lerem na diagonal dois ou três estudos.
“Plasticidade. Esta campanha podia ter mais plasticidade. Sim, sim, é isso mesmo, plasticidade”, disse-me uma vez uma técnica superior não sei de quê, especialista em algo, num ministério que não posso dizer qual. Enfim, não convém.
Por falar em ministério, um ministro com a tutela de outro, disse sobre uma campanha por nós apresentada, que o jogo de cores não o agradava. Soube depois que era daltónico.
Anos antes, um pseudo marketing manager de uma marca icónica deste país, confronta-me com a opinião da namorada, que lhe deve ter dito entre os lençóis, depois de uma noite de amor de sonho ou só de ter sonhado, que parecia que o menino da imagem estava agarrado a um varão de pole dance quando, na verdade, era uma corda pendurada numa árvore. Enfim, tudo bem. Eventualmente, terá sido essa entusiasmante noite que o conduziu a uma conclusão daquelas.
Há pouco tempo, um CEO de uma empresa de bastante razoável dimensão, depois de me perguntar por algumas referências para recrutar um responsável de marketing, resolve depois colocar no lugar uma familiar direta, sem qualquer formação ou conhecimento na área. “Parece-me que tem jeito”, dizia ele. Fiquei logo mais descansado, pensei eu.
Podia estar para aqui a estender este lençol, mas felizmente tenho que obedecer a um limite de carateres. É que histórias destas, para quem trabalha com marcas, no meu caso, há mais de 20 anos, é coisa que não falta. São, portanto, situações em que no melhor dos cenários, o nosso interlocutor até sabe o que é um banner e, no pior, acha-se a última Coca-Cola do deserto. Por conseguinte, não é preciso ter domínio sobre as matérias do marketing. Coisas como análise de dados, comportamentos, segmentações, correlações, insights e jornadas das audiências “é ao reinas”. Seguir um processo, não queimar etapas e não abdicar das várias competências, fazer briefings ou lá o que é isso, é só para quem quer perder tempo.
Mas depois, ainda temos aquele olhar do financeiro, que por ser o homem das massas, tem direitos e deveres superlativos, inclusivamente o de sacar do seu bom gosto para discorrer sobre a psicologia das cores. O problema é que, apesar de ser CFO, nunca ouviu falar em CPC, quanto mais perceber o que o distingue do CPM.
E como se não bastasse a avalanche de “conselhos” não solicitados, agora temos a Inteligência Artificial (IA), falo fundamentalmente da Generativa, no palco, com os holofotes apontados. Parece que a minha profissão está fadada a ser uma peça de museu ou sofrerá uma estocada final, só para recorrer a outra metáfora. Pelo menos é o que ouço muitos a dizerem por aí, depois de lerem na diagonal dois ou três estudos. Parece que a IA promete fazer tudo o que nós, marketeers, fazíamos. Mas também é verdade e todos sabemos isto: uma luz forte apontada a qualquer coisa atrai muita bicharada que não interessa.
Mas enfim, tentando percebê-los, também questiono: afinal quem precisa de um estratega, de um criativo ou de analista quando temos ali à mão de semear uma ferramenta online que gera imagens e cria textos com duas ou três prompts e outros tantos cliques? Como se isso fosse uma ideia. Mas Seth Godin já nos disse que o “Marketing is no longer about the stuff that you make, but about the stories you tell.” Não concordam com isto?
É verdade e tenho para mim que, enquanto a IA pode otimizar processos e fornecer dados rápidos, não tem a capacidade de compreender melhor o enquadramento e a verdadeira essência humana, que deve ser capturada nas campanhas de marketing. Pode gerar frases e imagens, mas não sente o poder de uma história que emociona ou entende a complexidade de uma marca, que vai além do algoritmo. A IA não sente o consumidor como nós, por mais que os dados a ajudem. E embora essas ferramentas possam ser mesmo muito úteis, elas ainda não substituem a criatividade, a intuição e a experiência de um profissional de marketing, parece-me. Mas se estiver “muito agarrado ao lugar”, digam por favor.
Nada como analisar um exemplo muito conhecido (convido-vos a ler este texto onde apresento outros) e aplicar os princípios da engenharia reversa. Para quem não sabe o que é, trata-se de uma técnica utilizada para entender o funcionamento de um produto por meio da análise e investigação das suas peças, circuitos e tecnologias. Ou seja, é preciso fazer o processo ao contrário, desmontando parte por parte, até que seja possível identificar cada componente, entender como é que foi produzido, os materiais, etc. Este processo é normalmente feito quando não há documentos ou projetos originais disponíveis.
Assim, pegando na clássica assinatura da Nike “Just do it” e nas campanhas que lhe deram vida, percebemos que temos a combinação entre uma mensagem simples, mas poderosa, com a compreensão profunda dos seus públicos, transformando esta marca em algo de maior, quase num legado. Sabendo o que sabemos hoje sobre a IA, acham que teria lá chegado? Falamos de ferramentas, per si, a tentar motivar um mundo inteiro a levantar-se e a agir. O marketing é sobre conectar e envolver pessoas, e isso vai além de apenas usar palavras e imagens geradas por IA. É sobre compreender sonhos, sentimentos e momentos. É sobre entender contextos, emoções e nuances culturais. Por isso, não resisto em deixar mais um exemplo para fazerem o mesmo exercício: a campanha de Persil, Free the Kids – Dirt is Good.
No fundo, acredito e sei que no marketing sempre haverá espaço para aqueles que sabem contar histórias, conectar marcas e, claro, dar aquele toque de criatividade que nenhuma máquina será capaz de fazer.
No final das contas, quem precisa de um marketeer? Pelo menos eu, com certeza.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Preciso de emprego. O marketing não precisa de mim
{{ noCommentsLabel }}