AI: a papinha ou o papão?

  • Nuno Antunes
  • 2 Abril 2024

Não me parece que a AI consiga pensar estrategicamente e criativamente em ideias únicas, distintivas e inesperadas. Chegaria a "Boa para guardar livros ou 75.800 euros", a polémica campanha da Ikea?

Tendencialmente, tenho tendência para não apreciar assim tanto as trends, mesmo sabendo que são uma cena cool. Por norma, chegam-nos em inglês através de expressões out-of-the-box, permitindo desenvolver frameworks carregadinhos de buzzwords. São até uma bela bengala para criarmos um wow effect que proporcionará o engagement necessário numa call ou numa meeting, mesmo que não tenhamos nada de especial para dizer. Ganham o estatuto de trending topic e estão na ordem do dia. Boa!

Ouvimos ou lemos umas tendencies proferidas por um qualquer guru e depois seguimos a cartilha, discorrendo umas coisas, amiúde com pouco conhecimento, profundidade ou fundamento. Sofremos de FOMO (Fear of Missing Out) e, sem saber bem como ou porquê, andamos por aqui a contribuir para mitos urbanos, fake news e coisas do género. “Amarrados”, portanto.

Não sei o que acham, mas quanto a mim isso só é bom para a sardinha que, parece-me, deve um bocado à inteligência. Anda em cardume, quer manter-se lá no meio e, para isso, basta andar com atenção às outras e fazer o mesmo. Não pensa, não faz perguntas, não discute e não conclui. Basicamente, não se esforça, não contribui e faz pouco ideia do que anda a fazer. Lá está, antes de ser papada, quer é a papinha toda feita.

Parece-me que este é um dos lados do que está a acontecer com a Inteligência Artificial (IA). Desculpem, com a Artificial Intelligence (AI). É verdade que é um dos assuntos da ordem do dia e que veio para ficar. De 2022 a 2023, o interesse na AI aumentou 550%, segundo a análise a mais de 15.500 artigos de notícias e blogs (fonte: Hootsuite Social Trends, 2024 Survey). Traz-nos desafios e, claro, muitas oportunidades.

No entanto, parece-me que há para aí muitos que olham para este fenómeno como que um milagre sem perceber o seu impacto, os seus constrangimentos e qual a melhor forma de o fazer acontecer.

Vejo na minha área, no marketing, nas agências, nos anunciantes e em todos os outros que fazem parte desta indústria, muita gente desertinha para, custe o que custar, usar estas ferramentas quase como que um atalho. Ou melhor, como uma nova maravilha da natureza, apesar de já andar cá há uns anos, não para contribuir ou ajudar, mas para fazer tudo e um par de botas por nós, num ápice. Para nos libertar de investigar, de pensar ou criar. E isso preocupa-me.

Preocupa-me que nos tire a curiosidade natural que nos fez entrar neste mundo das marcas. Preocupa-me que deixemos de saber fazer as perguntas certas, para apenas as debitarmos para um algoritmo e, assim, termos abordagens funcionais, sem graça, mais do mesmo. Preocupa-me que nos desmotive a refletir e a matutar e, por isso mesmo, nos acanhe o espírito crítico, a ousadia criativa ou mesmo o medo de errar. Preocupa-me que nos tire a angústia salutar que não nos deixa dormir, enquanto não chegamos a uma boa ideia. Preocupa-me que, por querermos tudo de forma rápida e à mão de semear, nos vá faltar cultura, conhecimento da história e da filosofia. Preocupa-me que deixemos de tomar atenção ao que se passa por esse mundo fora, tudo ingredientes fundamentais para os bons insights, sem os quais não há ideias daquelas dissonantes e inusitadas que nos fazem rir, chorar ou agir, por exemplo. Preocupa-me que nos foquemos mais em detalhar as funcionalidades de uma ferramenta qualquer do que enriquecermo-nos a ver o Agostinho da Silva no Youtube a mostrar a beleza de uma cabeça de exceção nas suas Conversas Vadias. Preocupa-me que acabem os livros, os atores, as exposições e que os filmes sejam protagonizados por avatares gerados num programa qualquer. Preocupa-me que percamos o interesse em viajar, porque tudo nos aparece à frente depois de dois ou três clicks.

Mas, da mesma forma que não acredito na papinha feita, também não vejo aqui nenhum papão. Não há fatalidade nenhuma, é certo. E este é o outro lado. Afirma-se muita coisa em volta da perspetiva que isto, afinal, basta carregar num botão para entrar o porco e sair o chouriço. E depois, na radio alcatifa, surge o receio se vamos deixar de ser relevantes e se o nosso emprego está no fio da navalha?

Voltando às lides do marketing, não me parece que a AI consiga pensar estrategicamente e criativamente em ideias únicas, distintivas e inesperadas. Chegaria a “Boa para guardar livros ou 75.800 euros”, a polémica campanha da Ikea para a sua estante Kallax?

É verdade que a AI pode auxiliar, e muito, na análise de dados, mas são as pessoas do marketing que possuem a experiência e a intuição para melhor interpretar os insights. Chegaria a “Try something new today”, a relevantíssima campanha da Sainsbury’s que desafia a imaginação dos seus clientes, que compravam sempre os mesmos produtos, para experimentarem algo de novo, aumentando o seu volume de negócios em milhões e milhões de libras?

Tenho também na ideia que a AI não tem a inteligência emocional suficiente para melhor compreender o contexto. Chegaria a “Temos que falar sobre Nos”, a eficaz campanha da Nos, vencedora dos últimos Prémios Eficácia, principal responsável para a marca subir, pela primeira vez, ao segundo lugar em quota de mercado no segmento móvel?

Não, pois não.

Podemos, sim, aceitá-la como uma nova colega de trabalho, que nos apoia no brainstorming, na organização de pensamentos, na procura de sugestões de conteúdos, na escrita dos primeiros drafts ou na sugestão de imagens, para dar alguns exemplos. E que com quem podemos explorar novas funções, metodologias e abordagens.

Sobre estes exageros, e já que falámos em gurus e em coisas ditas em inglês, deixo aqui esta afirmação do Bill Gates: “People often overestimate what will happen in the next two years and underestimate what will happen in ten.”

E agora, em bom português, muito humildemente, digo: Papinha feita? Esqueçam. E o papão, que faz parte de uma história qualquer, está para lá escondido num telhado de uma casa onde vive uma criancinha que se portou mal. E não vai sair de lá tão depressa. Acreditem.

Relax!

  • Nuno Antunes
  • business partner da Milford e professor ISCTE Executive Education

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