Presidenciais 2026: a inflação da visibilidade
Quando um performer consegue expor a mesma superficialidade que outros reproduzem involuntariamente, talvez o problema não esteja na irreverência da sátira, mas na pobreza de conteúdo que ela revela.
Com as eleições presidenciais marcadas para janeiro de 2026, sucedem-se as declarações de disponibilidade para disputar o mais alto cargo da nação. Uns confirmam intenções, outros insinuam possibilidades. O resultado é um desfile de nomes e de perfis, ex-governantes, militares, deputados, autarcas, figuras independentes. À medida que o calendário avança, a corrida ganha contornos de casting público, onde cada presença mediática se converte num teste de notoriedade.
A entrada de André Ventura, depois de meses a afastar a hipótese, apenas confirmou a tendência. A política transformou-se num palco onde a ausência se confunde com irrelevância. À esquerda, a multiplicação de candidaturas, de António Filipe a Catarina Martins e António José Seguro, espelha a fragmentação e a dificuldade em articular uma narrativa comum. À direita, Cotrim de Figueiredo e Marques Mendes disputam o centro liberal e institucional. Gouveia e Melo continua a representar o arquétipo do “independente técnico”, projetado pelo espaço mediático como figura de estabilidade.
Aparentemente, há espaço para todos. E todos, de alguma forma, afirmam representar “os portugueses”. Mas a repetição desta fórmula revela mais do que uma ambição, mostra o reflexo automático de uma linguagem esvaziada. “Ser o presidente de todos” tornou-se uma expressão tão comum quanto imprecisa, um refúgio discursivo que tenta abraçar o país inteiro sem verdadeiramente o compreender.
Ser Presidente da República não é um exercício de popularidade. É uma função de estabilidade e ponderação, com um papel constitucional claramente delimitado. O Presidente não governa nem legisla. Não propõe medidas, mas define o tom. Num ambiente mediático dominado pela lógica da presença constante, essa distinção tornou-se quase invisível.
Hoje, o espaço público é dominado pela inflação da visibilidade. Ser visto é confundido com ser viável. A comunicação política deixou de ser um instrumento de esclarecimento e passou a ser um fim em si mesma, um território de afirmação individual, onde a exposição é confundida com relevância. O fenómeno do fear of missing out (FOMO) entrou na política, ninguém quer ser o nome ausente do debate, o rosto que não aparece, a voz que não tem palco.
Há uma ironia nesta “corrida”, quanto mais candidatos surgem, mais o discurso se repete. Todos prometem proximidade, estabilidade, confiança. Poucos explicam o que entendem por essas palavras. O resultado é uma cacofonia de intenções que banaliza a própria ideia de presidência.
Até a entrada de Manuel João Vieira, que muitos lerão como excentricidade, é em si um comentário sobre o estado do debate. A sua candidatura, construída deliberadamente em torno da ironia, faz aquilo que boa parte dos candidatos evita, denuncia a mediocridade do discurso público e o vazio programático que se tornou aceitável no debate presidencial. Quando um performer consegue expor, através do humor, a mesma superficialidade que outros reproduzem involuntariamente, talvez o problema não esteja na irreverência da sátira, mas na pobreza de conteúdo que ela revela.
A multiplicação de candidaturas não resulta apenas da ambição pessoal ou da oportunidade mediática. É também o reflexo de uma transformação mais profunda. Como observa Thomas Piketty, as democracias ocidentais vivem uma reconfiguração estrutural, o centro liberal perdeu energia, a esquerda tornou-se defensiva e a direita populista aprendeu a traduzir o descontentamento em linguagem emocional. A fragmentação não é apenas eleitoral, é comunicacional. O espaço político converteu-se em espaço mediático, onde o essencial é manter presença.
O que antes se resolvia em programas e visões resolve-se agora em narrativas. Falar, aparecer, reagir, tornou-se sinónimo de existir. A política do soundbite substitui a do argumento, a emoção suplanta a coerência. A corrida presidencial é, assim, um espelho de uma democracia onde o ruído se confunde com vitalidade e a exposição com legitimidade.
Num tempo marcado por desconfiança institucional e saturação mediática, a forma como os candidatos se apresentam e comunicam poderá fazer a diferença entre reforçar o prestígio da Presidência da República ou banalizar o processo eleitoral. A resposta não está nas declarações de intenção, nem em quem fala mais alto. Está na forma como cada um se posiciona perante o país, com conteúdo, rigor e sentido institucional.
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