IA torna papel do contabilista e auditor “menos burocrático e mais estratégico”

A IA faz hoje parte da contabilidade e da auditoria, libertando os profissionais de tarefas rotineiras e tornando o seu papel mais estratégico. Mas não se pode confiar “cegamente” nesta tecnologia.

A Inteligência Artificial (IA) veio para ficar em todas as áreas, transformando a sociedade e a forma como se trabalha. Uma revolução que os contabilistas certificados e os auditores já estão a viver, mesmo sem darem conta. De acordo com os especialistas ouvidos pelo EContas, já faz parte do dia-a-dia destes profissionais, sobretudo entre as empresas de maior dimensão, tornando o seu papel menos burocrático e mais analítico e estratégico, abrindo a porta à oferta de serviços mais personalizados e, dessa forma, a melhores honorários.

“A IA está a transformar de forma profunda praticamente todas as profissões, sendo que a área da contabilidade não é exceção”, afirma Hélio Silva, consultor da Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC), realçando que, “volvida sensivelmente uma década desde a revolução que o e-fatura operou na profissão”, levando os softwares de contabilidade a começarem a automatizar tarefas rotineiras, “a IA vem redefinir as competências exigidas e o valor estratégico que os contabilistas certificados podem oferecer aos seus clientes e demais stakeholders”.

Na revisão oficial de contas, esta revolução também já está em curso. “A IA já está a mudar a nossa profissão. Durante muito tempo, olhámos para a IA como algo longínquo, quase um conceito de ficção científica”, diz Virgílio Macedo, bastonário da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas (OROC). Hoje, “essa visão já não corresponde à realidade. A IA entrou na nossa rotina profissional e está a transformar a forma como analisamos dados, como avaliamos riscos, como organizamos as equipas e até a forma como nos relacionamos com os clientes”.

É neste cenário que muitos profissionais no setor da contabilidade e auditoria procuram “integrar a IA nos seus processos para melhorar a eficiência, a análise de dados e o apoio à decisão”, ao mesmo tempo que reduzem os erros, nota, por sua vez, Ana Ribeiro, Senior Sales Director da Sage Iberia. “Trata-se de uma mudança que revela não só resiliência do nosso tecido empresarial, mas também um posicionamento estratégico de adaptação e inovação, mesmo perante desafios económicos e operacionais”, acrescenta.

"A IA já está a mudar a nossa profissão. Durante muito tempo, olhámos para a IA como algo longínquo, quase um conceito de ficção científica. Hoje, essa visão já não corresponde à realidade. A IA entrou na nossa rotina profissional e está a transformar a forma como analisamos dados, como avaliamos riscos, como organizamos as equipas e até a forma como nos relacionamos com os clientes.”

Virgílio Macedo

Bastonário da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas

Esta tecnologia permite, hoje, a “automatização de tarefas repetitivas e recorrentes” antes realizadas pelos contabilistas, sendo que “todos os documentos fiscalmente relevantes possuem QR Code” e a sua leitura permite classificá-los do ponto de vista contabilístico e incorporá-los em qualquer sistema integrado de gestão empresarial (ERP, na sigla em inglês), diz Hélio Silva, consultor da OCC, que tem o seu próprio ERP, o Toconline.

Por outro lado, possibilita o tratamento e a análise de dados em tempo real, gerando “dashboards de análise de forma totalmente automatizada, verificando desvios em tempo real, ao mesmo tempo que permite construir diversos cenários e prever o impacto dos mesmos na empresa”, acrescenta. A IA otimiza ainda a “governação e também reforça a segurança, impedindo acessos não autorizados a dados e aplicações confidenciais”, diz Ayise Trigueiros, SAP Solution Advisor e SAP Business AI Expert da SAP Portugal, frisando que a “automatização pode levar à substituição de funções mais operacionais, exigindo uma requalificação profunda da força de trabalho”.

Hélio Silva, da OCC, acredita, ainda assim, que as vantagens trazidas pelas máquinas não vão tirar o lugar aos humanos. “A IA não vai substituir os contabilistas — vai antes amplificar o seu valor. Cabe agora aos profissionais e entidades formadoras preparar a profissão para um novo papel: menos burocrático, mais analítico, mais estratégico”, diz. Uma posição partilhada pelos auditores. “A Revisão Oficial de Contas já não se limita a verificar documentos: é um processo contínuo, com maior componente analítica e valor estratégico. A IA é uma aliada nessa transformação, não um inimigo”, aponta o bastonário da OROC.

Formação é chave

Ainda há, porém, muito trabalho pela frente na adaptação a esta tecnologia. “Do ponto de vista prático, podemos assumir que as empresas de maior dimensão já utilizam a IA com um grau de adoção médio-alto, as micro e pequenas estarão ainda num grau de adoção baixo ou, na melhor das hipóteses, médio”, refere o responsável da ordem liderada por Paula Franco. Mas todos os contabilistas acabam por ter contacto com a IA. “A adoção acontece, em muitos casos, de forma indireta: os contabilistas utilizam funcionalidades baseadas em IA sem darem conta, através dos seus softwares de gestão”, diz ainda.

As Ordens têm ajudado os profissionais a adaptarem-se a esta nova forma de trabalhar, dando formações focadas nesta área. “A utilização de ferramentas baseadas na IA carece de literacia digital por parte dos trabalhadores das empresas de contabilidade que as usam. Pelo que a OCC irá estar atenta e reforçar as ofertas formativas nestas matérias, de modo a que o papel humano do contabilista certificado nunca seja minimizado ou substituível pela máquina”, refere Hélio Silva.

A adaptação à IA “exige preparação, literacia digital e, sobretudo, uma visão clara do papel do revisor no futuro, algo que a OROC tem vindo a defender com firmeza, através de iniciativas de formação contínua. A nossa missão é garantir que nenhum profissional fica para trás nesta transformação e que todos os revisores possam assumir um papel relevante, informado e valorizado na nova era digital”, diz, por outro lado, Virgílio Macedo, bastonário da OROC.

Serviços mais personalizados e mais bem pagos

A formação é importante, entre outros fatores, para saber identificar riscos associados a esta tecnologia. “O maior risco é confiar cegamente na IA. Classificações automáticas de faturas podem induzir erros se não forem revistas por humanos, sobretudo ao converter dados contabilísticos em declarações fiscais, onde a legislação portuguesa é particularmente complexa”, refere Hélio Silva, da OCC. “Acresce ainda a necessidade de acompanhar a evolução da legislação, já que falhas geradas por algoritmos poderão implicar responsabilidades legais”, alerta Ayise Trigueiros, da SAP Portugal.

“Com o desenvolvimento de agentes de IA mais sofisticados, os riscos aumentam e exigem salvaguardas adicionais. A construção destes sistemas deve assentar em sistemas baseados em modelos treinados com dados específicos do setor, em conformidade com as normas legais e éticas”, refere Ana Ribeiro, Senior Sales Director da Sage Iberia, apontando que é “igualmente crucial assegurar que a supervisão humana se mantém no centro do processo”.

Há ainda o risco de provocar desigualdade. “Quem tiver acesso à tecnologia e à formação avança e quem não tiver, fica para trás. Isso pode acentuar as assimetrias já existentes no setor. Além disso, há questões relevantes de cibersegurança, ética e responsabilidade sobre decisões automatizadas que ainda carecem de regulação mais clara”, nota o bastonário dos revisores. Ainda assim, garante, as “oportunidades superam largamente os riscos”.

"A IA permite ao contabilista oferecer serviços mais personalizados, como análises previsionais, apoio à decisão estratégica e consultoria fiscal proativa — áreas com maior valor acrescentado e que justificam honorários ajustados à nova realidade.”

Hélio Silva

Consultor da Ordem dos Contabilistas Certificados

“A adoção da inteligência artificial no setor da contabilidade representa uma oportunidade única para transformar profundamente o papel do contabilista. Estamos a falar de um setor historicamente sobrecarregado e com uma elevada pressão regulatória”, nota Tiago Costa Lima, Diretor de Gestão de Produto para Escritórios de Contabilidade e PME na Cegid.

Além da eficiência, a “IA permite ao contabilista oferecer serviços mais personalizados, como análises previsionais, apoio à decisão estratégica e consultoria fiscal proativa — áreas com maior valor acrescentado e que justificam honorários ajustados à nova realidade”, realça Hélio Silva, consultor da OCC. Além disso, o “risco de erro aritmético passa a ser diminuto, permitindo ao contabilista focar-se mais na componente fiscal”.

Está também a abrir a porta a novos serviços na auditoria. As chamadas “Big Four” estão agora numa corrida para lançar serviços de auditoria focados nesta tecnologia, numa altura em que os seus clientes procuram cada vez mais ter a garantia de que os sistemas de IA funcionam e são seguros. “A IA permite-nos trabalhar melhor, mais depressa e com maior profundidade. Permite libertar tempo dos revisores para se concentrarem no que verdadeiramente importa: a criação de valor acrescentado para os seus clientes”, frisa Virgílio Macedo, bastonário da OROC, concluindo que, “se for bem implementada, a IA vai valorizar o papel do ROC, nunca substituí-lo”.

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