Foi você que pediu trabalho flexível?
O difícil é alinhar as intenções e o discurso positivo e pertinente do caminho que algumas empresas começaram a trilhar neste tema, com a realidade da gestão portuguesa, presa aos vícios de sempre.
Dois hypes fortes no ano passado foram a saúde mental e os novos modelos de trabalho (remoto vs presencial). Muito se discutiu, fizeram-se experiencias, falou -se sobre a sua importância, de equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, burnout, bem-estar no local de trabalho, …. e acredito que se tem evoluído alguma coisa nesta área.
Como trabalhei vários anos no ambiente corporativo percebo perfeitamente as movimentações das empresas, em particular nos departamentos centrais, quando surgem estes hypes. Há um assunto novo que tem de ser endereçado, apresentado, esmiuçado com plano de ações, KPIs e proof point – os CEO falam disto, as consultoras apresentam estudos, as revistas dão destaque, aparecem Chief Happiness Officers (CHO), as organizações juntam-se para, em conjunto, trilharem um caminho de sucesso nesta temática…
No entretanto, e no mundo real, partilho aqui uma história de uma senhora, que apesar de ter pedido o anonimato, pediu também ajuda na divulgação da mensagem. “Na minha empresa dizem que o trabalho híbrido permite a flexibilização do horário de trabalho e me permite conjugar melhor a minha vida familiar, pessoal e profissional. Antigamente, eu trabalhava das 08h30 às 18h30 em dias normais. Agora dizem-me: “se precisares de sair mais cedo, podes entrar mais cedo; ou se precisares de ir a uma consulta a meio da tarde podes ir e trabalhas um pouco mais ao final do dia, etc.
Parece tudo muito lindo mas…. Agora trabalho de casa, entro às 8h30, pois tenho logo reuniões. Marco uma consulta para os meus filhos às 13h (já para não comprometer muito o horário), mas as reuniões do meio-dia nunca acabam a horas e logo as 14h tenho outra reunião, então não consigo levar os meus filhos à consulta. Marco uma consulta para as 19h, mas como o horário é flexível, agora tenho reuniões até as 20h.
Como passo o dia em reuniões, porque tudo agora é uma reunião, acabo a trabalhar muitas vezes à noite, depois de deitar as crianças. Exigem que eu vá ao escritório três dias por semana, e nesses mesmos tr~es dias que saia do escritório e continue a trabalhar de casa. Outro dia, um dos meus filhos disse-me: mamã preferia a nossa vida quando nos ias buscar à escola e brincavas connosco, agora estás sempre ao computador.
A flexibilidade não teve dois sentidos; é apenas do meu lado para a empresa e, portanto, se isto é flexibilidade prefiro voltar ao antigamente em que ao menos eu conseguia ir buscar os meus filhos as 19h, jantar com eles, ler-lhes um livro e dar-lhes os mimos que agora não consigo. Pensei basta! Falei com eles e disse, contem comigo mas agradeço que o façam no meu “horário de trabalho” e fui logo acusada de estar “desmotivada”, “descomprometida com a organização” “de não dar o extra mile”.”
Não sei o que é pior – a má experiencia do trabalho “flexível” ou a resposta da organização. Isto é saúde mental, não será?! É difícil (senão impossível) decretar normas, guidelines, ou receitas únicas para fazer face a este tema. Estamos a falar em mudar anos e anos de “cultura” corporativa, que é feita de picos, pressão, resultados e entrega. E será sempre – faz parte da sua natureza. O difícil é alinhar as intenções e o discurso positivo e pertinente do caminho que algumas empresas começaram a trilhar neste tema, com a realidade da gestão portuguesa, presa aos vícios de sempre.
Venham mais pactos e iniciativas no âmbito de uma melhor saúde (mental e não só) nas vidas profissionais, que incluam e espelhem as verdadeiras necessidades, e que não caiam em hypes de contexto, pontuais e sem repercussão e consequências. Os colaboradores, e por conseguinte, as empresas agradecem.
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